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Barra do Rio-de-Janeiro

“Ficamos existindo em território baixio da Sirga, da outra banda, ali onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu estava com uns treze ou quatorze anos…” GSV

 Mudei a rota original e segui até Três Marias, 35 Km de asfalto. Saí por volta das 13h e antes das 15h estava no centro da cidade. Fui em busca de conexão para atualizar o site e as redes sociais. Estava a quatro dias sem sinal de celular, desde Morro da Garça.

Dez quilômetros depois de Andrequicé  há uma entrada à direita no asfalto no sentido de Três Marias e poderia ter seguido por ali, por dentro do eucaliptal da Gerdau direto para a Barra do Rio de Janeiro mas provavelmente, como de fato aconteceu, teria sinal novamente só em Várzea da Palma, três ou quatro dias depois.

Almocei, encontrei um hotel, me instalei, descarreguei a bagagem e saí com a bicicleta para encontrar o São Francisco. Cheguei na ponte já eram quase seis, escurecendo. E vi o rio como um pau grande que fecunda as entranhas de Minas, essa senhora recatada, mas formosa.

Saí de Três Marias depois do almoço rumo à Barra do Rio-de-Janeiro. Muita subida e poeira, pela margem direita do São Francisco, mas sem contato visual com o rio, que fica cerca de 10 Km de distância da estrada. Descendo a serra, já escurecendo, chego no pequeno povoado de Pedras e encontro um senhor na primeira casa da estrada. Pergunto sobre o caminho, a distância até o meu destino, peço uma água e ele me convida para tomar um café. Seu José Valdilino estava em casa com um filho e um neto. Carvoeiro aposentado, carreiro de bois, pescador, contador de casos, 71 anos, 18 filhos com duas esposas, nove com cada uma. Metade homem e metade mulher. Uma vivia com ele nas carvoarias enquanto a outra morava em Corinto. Dois dos filhos nasceram com uma diferença de apenas três dias, cada um de uma mãe. Ele deu entrada no hospital com uma das gestantes e soube que a outra tinha entrado em trabalho de parto. Me conta que ficou aflito pelo risco delas ficarem juntas na mesma sala do hospital, teve de convencer a enfermeira a colocá-las separadas. Nesse momento ele franze a testa, não dá as risadas que costuma fazer durante toda a conversa. Ia ser o inferno, ele diz!

Fico mais de quatro horas ouvindo suas histórias, fala de caça, de vida na cidade grande, do convívio com as duas mulheres, do progresso da região, da política, das plantações de eucalipto, do trabalho nas carvoarias, de emboscada de onça, de música, de televisão e, volta-e-meia, cai no assunto da Ana, a menina que passou por lá um ano atrás, também de bicicleta.

Acabei dormindo em Pedras, num galpão em frente à casa do Seu Valdilino.  Quando estava transportando a bagagem para o galpão percebi um problema relativamente sério: quando tirei os equipamentos para gravar a conversa com uma das gomas que prende a bagagem se soltou e enroscou na catraca. Os ganchos ficaram presos e a roda travou. Tinha de desmontar a roda e resolvi fazer aquilo o quanto antes para dormir tranqüilo. Problema resolvido, mas o câmbio ficou comprometido. Teria de encontrar algum lugar para fazer um ajuste mais fino, talvez trocar alguma peça.

Dia seguinte tomei café com as três gerações e segui em frente. No meio do caminho, quase na entrada para a Fazenda Silga, avisto um lagarto Teiú na beira da estrada, taludo, da grossura de uma perna, pelo menos um metro e meio de comprimento da cabeça até a ponta do rabo. Estava imóvel na estrada e quando vi aquele brilho que reluziu esverdeado, pensei num átimo que fosse algum pedaço de carcaça de carro. Mas ele correu quando ouviu o ranger da bicicleta, levantando poeira. O Teiú é um dos bichos mais curiosos que já vi. Um animal quase pré-histórico, mitológico, meio dinossauro e meio dragão.

Cheguei em frente à centenária casa da Fazenda Cambaúba sem ter certeza de que aquele era mesmo o caminho. Deixei alguns quilômetros para trás uma bifurcação e entrei à direita. Parei ali para pedir informação e a Dona Vera, para minha surpresa e alívio, me disse que o caminho era aquele mesmo, pelos fundos da casa. Ela estava sozinha em casa com seu neto, preparando o almoço.

Conversamos um pouco, ela me ofereceu café, disse que morava ali há 40 anos, contou do filho que era músico, do diamante que ele encontrou na cabeceira do rio, das filhas todas casadas. Me indicou o caminho da foz por uma trilha no meio de um pasto. Disse que lá eu encontraria algum barqueiro para me atravessar, caso contrário poderia voltar para almoçar e tentar novamente mais tarde.  Segui a trilha que margeava o rio, mas só tive certeza de que era o de-Janeiro quando consegui vencer os arbustos e saí bem no bico, uma ponta de terra onde ele encontra com o São Francisco. Estava exatamente na Barra do Rio-de-Janeiro!

Fiquei por ali um tempo, visualizando a cena do encontro dos dois meninos. Não há porto, são apenas duas estacas fincadas e outra atravessada, formando uma pequena trave que serve como ancoradouro. Algumas décadas atrás o leito provavelmente era mais estreito. Foi se alargando com a erosão das barrancas causada pelo desmatamento da mata ciliar. Ali é a triangulação exata entre três municípios: Três Marias até o bico; do outro lado do São Francisco pertence a Buritizeiro; na margem direita do De-Janeiro é município de Lassance. Mais do que a esses municípios, aquela pequena ponta pertence ao território imaginário de muita gente no mundo todo.

“O de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco, bem reto ele vai, formam uma esquadria. Quem carece, passa o de-Janeiro em canoa – ele é estreito, não estende de largura as trinta braças. Quem quer bandear a cômodo o São Francisco, também principia ali a viagem. O porto tem de ser naquele ponto, mais alto, onde não dá febre de maresia” GSV

Havia alguns pescadores do outro lado, uns trinta metros. Gritei e um rapaz me respondeu. Era Iego, que foi conseguir um barco e me levar até a outra margem. Do outro lado existia o Rancho do Nem, um acampamento de pescadores.  Quem me recebeu foi Dona Liquinha, esposa do Nem – ele tinha ido a Três Marias com os pais do rapaz que me atravessou. Sentei na grande mesa de madeira, conversamos um pouco, as perguntas recorrentes sobre a bicicleta, e acabamos falando inevitavelmente da Ana. Dona Liquinha, mulher de personalidade forte, um tanto mal-humorada à primeira vista, durona, se derramava toda para falar da garota que passou por lá um ano atrás de bicicleta. Elogiava a coragem, a educação, a simplicidade. Me ofereceu um prato de comida, eu aceitei e ela voltou da cozinha com um prato de arroz, feijão, guisado de abóbora e… um bife de boi. Fiquei inconformado de estar ali às margens de um dos maiores rios do país e comer carne vermelha. Ela me disse que raramente comiam peixe porque tinha muito espinho, era difícil de limpar e outros motivos que não me convenceram. Dona Liquinha tinha morado em cidade toda a vida, estava ali fazia cinco anos acompanhando o marido que foi cuidar do pai, muito doente. Às vezes muda tudo à nossa volta mas a gente não abandona velhos hábitos. Ela me dizia que era costume.

Dona Liquinha manifestou interesse em conhecer o livro que falava daquele lugar, esse livro que tinha feito com que algumas pessoas saíssem do conforto de suas casas para se aventurar nesse sertão afora. Me passou o endereço, fiquei de enviar um exemplar para ficar de “consulta”no rancho.

Combinei com o Iego, com o consentimento da dona do barco, uma travessia até o outro lado do São Francisco para fazer algumas fotos. Acabamos também subindo um bom trecho do de-Janeiro. Fiz fotos e vídeos ouvindo histórias de sucuris, jacarés e piranhas.

“A feiúra com que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de-janeiro, quase só um rego verde só. – “Daqui vamos voltar?” – eu pedi, ansiado.” GSV

Me despedi de Dona Liquinha, do Iego e de Diadorim menino. Segui rumo a Barro Branco, um pequeno povoado que ficava cerca de 6 Km à frente.

Postado em 07/08/2012 Cavalo Motor

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

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