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Capivara de Cima e Buritizinho

Sigo a estrada rumo a Andrequicé passando por Buritizinho. Muita subida, mas principalmente muito pó, camadas de 15 cm em alguns trechos. O pneu vai fazendo sulcos profundos e quando passa algum veículo a nuvem de poeira engole tudo. Deixo o Rio Bicudo para trás e vou rodeando o Morrão rumo oeste até ele sumir da minha vista lateral esquerda. Um casal de tucanos passa por mim na estrada, fazendo seu truuu truuu característico. Uma pena que essa ave tenha essa conotação partidária tão pejorativa. É uma ave magnífica.

Chego num pequeno lugarejo com meia dúzia de casas e uma escola na beira da estrada no final da tarde, restando ainda meia hora de luminosidade natural. A opção é seguir adiante mais 55 Km de subida e poeira no escuro ou arranchar por ali mesmo. Prefiro pernoitar.

João Carlos e sua família, de Venda Nova em Belo Horizonte, me encontram no meio da estrada em frente à escola e me convidam para conhecer o pequeno rancho onde vieram passar o final das férias de julho com filhas, netas e sobrinhas. O minúsculo lugarejo se chama Capivara de Cima e fica no meio do caminho entre Morro da Garça e Andrequicé, às margens do Rio Capivara.

Fiquei emocionado com a hospitalidade e o cuidado deles. Queriam que dormisse na casa principal, mas preferi ficar no cômodo isolado, com paredes de barro, onde funciona a cozinha. Comi junto com a família, respondi as dúvidas, contamos casos, demos boas risadas. Comi carne de porco novamente depois de 22 anos. Nessas situações recusar comida é ofensa. Além disso tive a sensação de que aquela proteína animal seria necessária para continuar a viagem.

Pela manhã passo na casa de Dona Dazinha, uma senhora que mora só com afilha Vanda, as duas já de idade. Tomo café com biscoito de forno. Ela me conta a dificuldade de transporte para cidade pois faz mais de um ano que a linha que fazia o trajeto entre Morro da Garça e Felixlândia foi desativada. A estrada está muito ruim e os ônibus quebravam muito. Outro agravante é o fato da região pertencer a Corinto, que está mais distante e com acesso mais difícil. Assim, o lugarejo fica esquecido e nem na época da política – quando os candidatos costumam fazer promessas e realizar alguma melhoria pontual – conseguem atrair a atenção por possuir poucos moradores, quantidade insignificante de votos.

Mais alguns quilômetros, vencendo a Serra da Paina, atinjo o vilarejo de Buritizinho, também distrito de Corinto. Lá, num quadrado gramado de aproximadamente 200 metros, cercado por pequenas casas laterais, um galpão e uma pequena igreja ao fundo, que se destaca como construção mais imponente, sou recebido pelo Seu Sebastião e pela Dona Marta com sua família. Chego na hora do almoço, no início desconfiados, logo servem um prato e me convidam à mesa. Dona Marta é prima primeira da Vanda, filha de Dona Dazinha. As referências familiares vão tecendo uma teia de contatos ao longo do caminho, abrindo as portas e facilitando o relacionamento.

As filhas, Mariana e Última, vendo a bicicleta me perguntam se conheço a Ana Luísa, que passou por lá um ano atrás, nesse mesmo período. Mandam lembranças e me pedem para enviar carta com as fotos. Última deveria ter sido a última filha de Sebastião e Marta, mas escapuliu mais uma, que quiseram dar o nome de Caçula. O cartório impediu, ficou Mariana mesmo!

Continuo a viagem com o Itamar, sanfoneiro e vaqueiro, que me acompanha cerca de 5 Km com sua bicicleta Barra Forte. Vai contando casos e me mostrando árvores no cerrado fechado: Pau-Terra, Sucupira-Preta, Jatobá, Copaíba, Araticum-do-Cerrado, Cedro-Rosa, Araçá-Boi, Cajuzinho-do-Campo, Aroeira e muito Pequi. Agora não há mais pó, mas em compensação enfrento muitos bancos de areia, que travam as rodas.

A certa altura o cerrado é tomado por uma grande plantação de eucaliptos, que escurece a estrada com sol a pino. Propriedade da Gerdau, essa madeira vai alimentar os auto-fornos para produzir aço. Me lembro da cidade da minha mãe, Barão de Cocais, onde a fuligem das chaminés dessa siderúrgica cobrem de pó preto os telhados das casas e provocam doenças respiratórias na população. Seu ruído intermitente perturba a cidade silenciosamente, a ponto de nenhum morador conseguir perceber o zumbido, com seus quase 90 decibéis dia e noite.

É muito fácil se perder dentro de um eucaliptal, há vários caminhos, nenhuma indicação. Tento me manter na via principal, seguindo o rastro mais recente de carros ou animais. Alguns quilômetros adiante avisto uma clareira e tenho uma grande surpresa: os primeiros buritis de uma vereda! Alegria grande encontrar aquela Vereda de São José, depois eu soube, mesmo espremida num corredor entre eucaliptos de um lado e de outro. Ali os pássaros fazem festa: mergulhões, marrecos, tucanos, maritacas. Os buritis carregados nos cachos, a água doce cristalina. Fico intrigado com uma pequenina casa de sapé quase escondida no meio do buritizal. Um pequeno curral, uma laranjeira carregada tomando a frente da casa, uma mangueira ao fundo. Mas estava fechada, sem morador. Quem será que vive ali naquele pequeno oásis do sertão?

Postado em 29/07/2012 Cavalo Motor

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

(3) respostas

  1. Margarida
    29/07/2012 de 23:03 · Responder

    Gostando de ver, Makely! Vá em frente! Só mesmo quem gosta da arte das letras e de outras mais, vencendo barreiras dos limites familiares, pode incentivar a loucura a que você se propôs. Certamente muita coisa bonita há de sair daí. Guimarães te ilumine.

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