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Início da Viagem

O impulso primordial da viagem é a busca do desconhecido. Dos exploradores de séculos anteriores aos primeiros navegantes, dos grandes movimentos migratórios que povoaram os continentes às viagens espaciais, todos saltaram no abismo do desconhecido em busca de respostas que não encontravam onde estavam. Num momento em que não há mais fronteiras desconhecidas, em que é possível alcançar os pontos mais remotos do planeta com um intervalo de apenas algumas horas, o foco do espírito aventureiro deixa de ser simplesmente alcançar o destino final e passa a ser a forma e os meios utilizados para se chegar a esse destino.

Estou me lançando numa viagem partindo de referências reais em busca de lugares supostamente inventados. Esse espaço simbólico, mitológico, literário, descrito por Guimarães Rosa no Grande Sertão: Veredas, é o desconhecido. Apesar de toda a pesquisa toponímica que passou da consulta a mapas antigos a sistemas avançados de geolocalização por satélite, buscando identificar na trama do romance o trajeto exato do personagem pelo que é possível inferir a partir dos dados e informações apresentados pelo narrador, alguns locais de extrema importância para o desenrolar do enredo continuam obscuros. Não foi possível identificar por exemplo o local denominado Veredas Mortas, onde Riobaldo teria feito o suposto pacto com o demo. Pode-se deduzir no entanto que fique entre os municípios de João Pinheiro e Buritis, ao sul da extensa região conhecido como Chapadão do Urucuia.

Outro local polêmico, de localização controversa, é o Liso do Sussuarão, deserto árido de difícil travessia. Alguns pesquisadores querem identificar nesse local uma transposição do Raso da Catarina, região desértica no sertão da Bahia onde Lampião e seu bando se refugiavam da perseguição policial. Pela indicação do narrador entretanto o liso se encontra na divisa dos estados de Minas Gerais e Bahia, da cabeceira do rio Carinhanha, próximo ao município de Formoso seguindo em direção ao rio Coxá. Tudo leva a crer portanto que trata-se de um local chamado Liso da Campina, ou da Campanha, identificado por Allan Vigiano na sua incansável e reveladora pesquisa. Mas o Liso da Campina possui apenas alguns poucos quilômetros, podendo ser atravessado à pé em poucas horas, ao contrário das “quase trinta léguas de largo e cinqüenta de fundo” como conta Riobaldo, o que equivale a aproximadamente 180 Km de largura e 150 Km de profundidade. Guimarães Rosa portanto subverte a geografia real, estendendo a área desértica que corresponderia ao Liso e suprimindo os rios que cortam a região.

Alguns locais, por outro lado, são de fácil identificação no mapa real, como o córrego do Batistério em Várzea da Palma, local onde Riobaldo reencontra Diadorim e ingressa no bando como jagunço; a barra do rio do Sono, local da morte de Medeiros Vaz e onde pela primeira vez Riobaldo assume o comando do bando; ou ainda o Paredão de Minas, distrito de Buritizeiro. Essas indefinições e essas certezas, suposições e assertivas constituem a própria malha da trama que vai ser tecida durante a viagem. Estou partindo do sertão real, palpável, em estado de mapa, para o sertão simbólico, imaginário, portanto desconhecido. E para entrar nesse ambiente inescrutável vou montado num cavalo motor, animal-máquina mitológico que representa uma nova concepção das tecnologias como extensão do corpo humano, sinal dos tempos, início de uma nova era pós-industrial, mais consciente e conectada com o ambiente.

Uma bicicleta vai me possibilitar um contato com as pessoas, os lugares, as plantas e os animais que não seria possível de outra forma. De carro ou de ônibus a perspectiva seria outra, o trajeto seria mais fácil, menos arriscado, mas com muito menos riqueza de detalhes. Por isso evoco esse espírito aventureiro dos nossos ancestrais, esse desejo da estrada, essa busca do desconhecido, como a motivação primeira da viagem. Vou pra estrada sozinho com meus demônios e a benção de Nossa Senhora da Abadia, protetora dos jagunços. Pois sei que viver é muito perigoso e o que a vida quer mesmo da gente é coragem grande pra fazer a travessia!

 

Postado em 13/07/2012 Cavalo Motor

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

(4) respostas

  1. Mariana Fernandes Gontijo
    20/07/2012 de 18:08 · Responder

    muito bom, makely. gostei muito..
    te mando coragem para o desconhecido e para os passos da travessia,
    jagunço gontijo provisoriamente – marilama – alcançarei mais um nome até o fim da viagem.

    grande abraço,

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