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Ave Palavra

Pela manhã levei a bicicleta no Seu Zezinho para trocar os raios comuns da roda traseira, todos já frouxos, por raios duplos. Ele me explica que em Cordisburgo é comum o uso dos raios reforçados porque eles costumam carregar pedras nas bicicletas.

Na volta passei pelo Museu, agora aberto, e fiquei surpreso com a nova configuração, mais detalhada, com vídeos, música e, principalmente, mapas cartográficos com os principais pontos de referência das obras. Fotografei os mapas para contrapor aos meus, a gente vai sempre ajustando, encontrando outros pontos de passagem, identificando novas estradas e possibilidades de trajeto. Me encontrei com o coordenador do Museu, Ronaldo, que se lembrou da passagem do Expresso Melodia em 2007. O caminhão-palco ficou posicionado em frente ao museu. Mais informações sobre o projeto aqui: http://makelyka.com.br/?p=40

Ronaldo me conta das novidades, mostra o Manto do Vaqueiro, realizado pela artista plástica Joana Salles com a colaboração de mais 100 bordadeiras da região. Mostra também orgulhoso o documentário “Conto o que vi, o que não vi, não conto”, com roteiro e direção da pesquisadora paulista Beth Ziani e depoimentos de vários personagens do sertão.

Na conversa eu explico melhor o projeto da viagem de bicicleta, indico o site e ele me convida a fazer uma exposição no Museu quando voltar.

Durante a tarde fiquei atualizando o site e as redes sociais, aguardando o Brasinha e a Rachel que, segundo informação dos moradores, estavam para Sete Lagoas. Não encontro nenhum dos dois.

À noite assisto à coroação de Nossa Senhora de Fátima na casa de Dona Lindalva, que me hospeda. Ela aguardava há três anos esse momento, a imagem circula pelo interior do estado. Fiquei mais incomodado com a conivência ou simplesmente a falta de reação das pessoas presentes do que com o discurso intolerante do religioso que conduzia o ritual com ataques abertos à descriminalização do aborto e à união civil entre os homossexuais. Em outras situações eu teria me manifestado, mas fiquei quieto.

Depois do terço interminável – resolvi ficar em respeito à dona da casa mas também para ver até onde iam os ataques – dou mais uma volta pela cidade à noite, subindo pela rua principal, da capela São José, o marco inicial da cidade, até a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, no ponto mais alto.

Pela manhã volto à oficina para regular a bicicleta antes de partir. Passando em frente à venda Ave Palavra, encontro a porta semi-aberta e resolvo entrar. A loja tem uma infinidade de artigos: de baleiros a caixas registradoras antigas, moldes para fabricação de sapatos, rabecas e violas penduradas no teto, fotos encardidas, livros e revistas, garrafas coloridas, estandartes, sincerros, calotas, lâmpadas de todas as cores, cartazes, lamparinas, arreios, ventiladores, chaleiras, máquinas de escrever, alforges, tampinhas de garrafa, cabaças e tantos outros objetos, tantas miudezas que dá pra passar o dia inteiro observando sem conseguir guardar tudo com o olho. Mas a peça mais rara da venda – que aliás, como quase tudo ali não está à venda – é o Brasinha, que me recebe com um sorriso largo detrás do balcão de madeira. Ele já me aguardava, como se adivinhasse que eu fosse passar por ali naquele momento, e me convida para sentar nas cadeiras do antigo cinema, que não foram parar ali por acaso. Quando você senta nelas começa a visualizar na tela do córtex as imagens em movimento inspiradas pelas histórias contadas por um dos moradores mais curiosos de Cordisburgo.

Brasinha conheceu e conviveu com alguns dos personagens reais mais interessantes da obra rosiana, como o vaqueiro Manoelzão, o cantador Bindóia, o versejador Zito, o boiadeiro Juca Bananeira entre tantos outros que conheceu pelas andanças sertão adentro. Hoje ele coordena o grupo de contadores de histórias Miguilins , das crianças, e Caminhos do Sertão, formado pelos adultos. Um fato curioso, que me encheu de orgulho, foi descobrir que após apresentarem o conto Luas-de-Mel, de Primeiras Estórias, os contadores cantam “Amor de Dentro”, uma parceria minha com o Renato Negrão, do meu primeiro disco, um demo, gravado com a cantora Maísa Moura, que pode ser ouvida aqui:  http://soundcloud.com/makelyka/o-amor-de-dentro

Postado em 24/07/2012 Cavalo Motor

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

(2) respostas

  1. wilson
    20/08/2012 de 18:11 · Responder

    Muita viagem…
    Certa vez li um livro que nem me lembro o nome do autor:
    “o zem e a arte de manutenção de motocicletas”
    o cara contando suas viagens de motocicleta pelos estados unidos. parece que ele gostava de acampar no meio dos eucaliptos…

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