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Rota do Ouro

Cheguei a Muriaé na quinta à noite. Na cidade mineira da zona da mata onde nasceu Alcyr Pires Vermelho participei do Fórum Regional de Cultura , organizado pela Fundarte, que faz as vezes de Secretaria de Cultura no município. Lá eu fiquei sabendo que na vizinha Leopoldina a casa onde morou Augusto dos Anjos – e onde se encontram ainda parte de sua biblioteca e objetos pessoais – está literalmente caindo aos pedaços. Não que eu seja necessariamente entusiasta da criação de museus, mas a biblioteca do autor de versos como “consulto o phtah-hotep, leio o obsoleto rig-veda” deixa a curiosidade de qualquer bibliófilo aguçada. Augusto morreu em 1914 praticamente anônimo e foi sendo redescoberto nas décadas seguintes por prostitutas, estivadores, trabalhadores braçais, que declamavam versos inteiros do poeta paraibano. Conheci um porteiro que copiou à mão numa biblioteca pública todos os poemas de “Eu”. O mais impressionante contudo não é que o Brasil profundo descobriu Augusto décadas antes da academia, mas o fato de que ainda hoje ele é um dos poetas mais populares, mesmo com todo o hermetismo sorumbático de sua obra.

Ao lado de Muriaé fica a também tupiguaranírica Miraí, onde nasceu Ataulfo Alves. Um pouco mais à frente encontra-se Cataguases, onde Rosário Fusco, Ascânio Lopes e cia. publicaram na década de 20 a Revista Verde. É de lá também o pioneiro do cinema nacional Humberto Mauro. Andando mais um pouco chegamos à terra de Murilo Mendes. É por ali a rota do ouro. Quem precisa de Estrada Real?


Baratos da Lapa

Achei na Lapa um hotel só para solteiros que cobrava um preço que não devo dizer pra vocês não ficarem pensando que era um pulgueiro. Na verdade era, mas eu consegui um quarto limpo e arejado. Mais a segunda que a primeira opção. Mas como eu viajo com meu sabonete e meu saco de dormir, ta limpo! Detalhe que no aeroporto (eu não fui de avião, mas como peguei carona com o Gustavo Gazzinelli, que estava em Muriaé representando o Ministério da Cultura e teria de seguir para Brasília, acabei parando no Galeão) me encontrei com o pessoal do grupo paulista A Barca. Pra quem não sabe é um grupo musical que viaja o país pesquisando e registrando as manifestações da cultura popular. E tocam muito, de um tudo. Entre os integrantes o meu parceiro, o violonista virtuose Chico Saraiva (o mesmo que esteve comigo em BH junto com a Suzana na apresentação do Francisco Nunes dia 13 de outubro), o cantor não menos virtuose Marcelo Pretto e o casal dinâmico Felipe Júlian e Sandra Ximenes, que tocam o projeto Axial, do qual eu sou fã incondicional. Estavam chegando ao Rio para fazer duas apresentações com a comunidade Casa Fanti-Ashanti do Maranhão. Me programei para ir no dia seguinte, numa casa de espetáculos chamada Brasil Mestiço, ali na Lapa, a duzentos metros de onde eu estava, digamos assim, hospedado. O mais impressionante é que voltamos a nos encontrar neste mesmo dia à noite totalmente por acaso, em Santa Tereza num lugar chamado Bar do Mineiro. Santa coincidência Batman! E eu tinha ido até lá encontrar um casal de amigos que morava em São Paulo mas era do Rio e que estavam novamente no Rio, a Ana Paulindrômica e o João Vítor. E ainda faltou encontrar o Pirata, que acabou de se estabelecer por terras cariocas, e a Larissa, que agora está muito ocupada fazendo novela e não tem mais tempo para os amigos. Fica pra próxima!


Fórum Cultural Mundial







Fui sem muita expectativa, porque é sempre mais ou menos aquela coisa, uma infinidade de palestras que no máximo confirmam o que você já sabe, um amontoado de estandes barulhentos com gente querendo te vender qualquer coisa – o que me lembra o camelódromo da Oiapoque, vulgo Shopping Oi, na zona do baixo meretrício de BH, só que com um verniz politicamente correto – e um monte de gente cult com um crachá pendurado no pescoço correndo de um lado pro outro pra não perder nada da programação totalmente absurda, com vários horários encavalados, cancelamentos de última hora e mediadores que fazem de tudo para aparecer mais que os convidados. Mas fui porque fomos convidados para participar das oficinas que a Funarte ofereceu sobre exportação da música brasileira e aproveitamos o ensejo para fazer um encontro do Fórum Nacional de Música.

Talvez porque não esperava muita coisa do fórum, o caso foi que me surpreendi. Vi nosso ministro dar uma aula para vários ministros da cultura de diversos países, tanto de baixo como de cima da linha do meio do mundo, todos espantados com a desenvoltura mirabolante, que nós conhecemos tão bem e que para alguns não faz muito sentido -, com que Gil falava (em inglês, francês ou portunhol) dos assuntos mais complexos (alguém duvida que cultura não seja um assunto complexo?) usando os exemplos mais ordinariamente cotidianos. Falou de bio-economia criativa e reforma agrária da propriedade intelectual, instigou a leitura de Celso Furtado e Walter Benjamin e ainda disse, pra meu espanto, que estamos entrando na era pós-indústrial. Chegou usar o termo não-indústria (nesse momento eu quase gritei CONTRA INDÚSTRIA!, mas me contive, afinal tudo tem o seu tempo). E não é que por acaso, já na rua, quando eu esperava um táxi encontro mais uma vez com o ministro, trocamos algumas palavras sobre a conferência e eu aproveito para entregar em mãos alguns produtos contra-industriais que eu levava a tiracolo, entre eles a Revista de Autofagia, com o seguinte editorial:

“A Revista de Autofagia é uma autoprodução. Para além do caráter explicitamente tautológico da afirmação, isto significa sobretudo que ela foi feita dentro de um conceito que leva adiante a máxima anarquista “faça você mesmo”. Autoprodutores são criadores que pretendem dar conta de todo o processo da cadeia produtiva em que atuam. Criam, produzem, divulgam, distribuem, ensinam e, não raro, consomem eles mesmos seus próprios produtos. Autoprodutores são autófagos por natureza. Além de outras coisas, isso significa também, e principalmente, que eles são não-especialistas. Atuando em maior ou menor grau em todos os elos da cadeia, vão na contracorrente da ultra-especialização fordista imposta aos operários da Indústria Cultural. São (somos) os operários da Contra Indústria.”

Fiz também um contato da hora com aDirectora Nacional de Política Cultural y Cooperacion Internacional de Buenos Aires, Mônica Capano, simpática e animada com a música e a literatura produzida por essas bandas e que quer levar brasileños para tocar na terra de Piazzola. E viva Che!

Hutúz

Os armazéns da zona portuária do Rio de Janeiro são lugares inóspitos, quase abandonados e em estado de degradação avançada, como de resto boa parte do centro velho e imperial da cidade maravilhosa. Gosto de caminhar por aqueles antigos sobrados e ficar imaginando como aquelas ruas deviam estar apinhadas de gente com sotaque português nos oitocentos.

Pois é ali no Armazém 5 do Cais do Porto que acontece o Festival Hutúz realizado pela Central Única de Favelas (Cufa) em torno dos fundamentos da cultura Hip Hop. Provavelmente é o maior evento do gênero hoje no país. Estive lá no domingo atraído pela notícia de que haveria batalha de MC’s e, principalmente, a possibilidade de um duelo entre MV Bill e Mano Brown. Essas batalhas de improviso me interessam particularmente porque remetem a toda uma tradição da cultura oral, que aqui era muito comum nas feiras do nordeste mas que traz resquícios dos trovadores medievais e aedos gregos. Além disso eu comparo os dois rappers – ou MC’s como eles preferem ser chamados – guardadas ou não as devidas proporções, a Caetano e Chico e o que eles representavam para a música brasileira três décadas atrás. Senão vejamos: a figura carismática do líder dos Racionais, avesso à mídia com seu discurso messiânico me lembra o Chico engajado do período de luta contra a ditadura. A unanimidade relativa deles me impressiona. Já o carioca de Cidade de Deus, polemista, especialista em autopromoção (o que não significa que negar a imprensa não seja também uma forma eficiente de autopromoção), me lembra o Caetano controverso e contraditório de sempre. Essa relação de amor e ódio com a imprensa, esse faro para a polêmica. Ainda acho que falta aos manos um pouco de humor. Talvez o mal humor seja sinal dos tempos. Mas acontece que a batalha era boato, cada um fez sua apresentação, primeiro Bill com seu naipe de cordas e metais, depois Brown e sua trupe old school. Nada de improviso, nem canja na apresentação do outro. Atraso de mais de quatro horas, saí de lá quase cinco da matina mas valeu a pena.


CEP 20 Mil

Cheguei atrasado no Teatro Sérgio Porto que fica atrás de um posto de gasolina na Avenida Humaitá, na zona sul carioca, já na última música da banda paraibana Zefirina Bomba. Rock psicodélico feito com viola dinâmica envenenada. Depois veio o performer Alan Castelo, vestido de Jorge, cabeça de negro, filho de Ogum contra o dragão da maldade tingindo o céu da cidade com seu sangue vermelho. O grande responsável por tudo também estava lá, organizando o movimento e orientando o carnaval, o incansável falador de poemas, pai de todos nós, grande filho da puta, santificado seja, por séculos e séculos, por não deixar morrer a chama acesa da poesia. Chacal é o nome dele, vulgo Ricardo. Agora infernal acompanhado de sua Beatriz. Ainda me fez subir no palco pra falar um poema e eu, que rezo cantando reggae, não me fiz de rogado. Deus conserve em benzina! Depois de tudo acabado, as luzes já acesas, o circo desmontado, quem ainda aparece por lá é ninguém menos que Fausto Fawcett. Explico: Fausto e Ricardo iam pegar estrada para se apresentarem dia seguinte no Sesc Vila Mariana em São Paulo, num projeto chamado Na Ponta da Língua. Dizem que foi foda.

Saí de lá e fui pro meu hotel barato na Lapa. Passei ileso entre os travecos da Mém de Sá, parei num boteco e estava passando um filme antigo com o Jece Valadão na Globo, mas o rádio tava ligado e tudo parecia um videoclipe. Fui dormir.

Postado em 04/12/2006 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

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