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Contracatraca

Imagine que não houvesse hospitais públicos, nem postos de saúde, tampouco distribuição gratuita de medicamentos. Imagine que esse direito constitucional, por uma dessas ironias do destino, por uma movimentação qualquer em função de interesses econômicos no passado, por um descuido, fosse indiscriminadamente pago. Imagine que isso fosse uma situação considerada normal, que algumas empresas detivessem o monopólio pelo serviço e nossa opção ficasse restrita a essa determinação. Imagine que as pessoas, independente das condições, fossem obrigadas a pagar por esse serviço, mesmo que esse custo representasse 30% ou mais do seu orçamento. Imagine esse quadro, com todas as pessoas considerando absolutamente normal, mesmo sob o risco de doença e morte, o pagamento por consultas, tratamentos, atendimentos médicos e remédios. Agora acrescente aí o surgimento de uns jovens idealistas, ingênuos, alguns estudantes, outros recém-formados, propondo um serviço de saúde gratuito e de qualidade. Pode parecer absurdo, mas não é muito diferente do que está acontecendo hoje no país com a reivindicação do Movimento Passe Livre pela Tarifa Zero no transporte público.

Então prestem atenção, a principal pauta não é educação, saúde ou segurança. Não é tampouco a corrupção, não é a impunidade, não é a derrubada da PEC 37, nem a recusa do Estatuto do Nascituro. A pauta aqui não é o direito das minorias e a saída do Marco Feliciano. A pauta não é a interrupção das obras de Belo Monte, não é a demarcação das terras indígenas.

A pauta é a redução do preço das passagens até valores simbólicos. A pauta é o subsídio total para o transporte público. A pauta é a tarifa zero. Isso não significa que as outras pautas serão abandonadas ou ficarão perdidas. Pelo contrário, elas permanecerão em ebulição e vão despontar no momento certo. Não adianta atropelar a pauta e pular a catraca. Não vamos resolver os problemas todos do país de uma vez.

A garantia do direito constitucional de se manifestar livremente e o repúdio à violência policial continuam como pano de fundo, mas a força simbólica desse gesto visionário que pretende garantir o pleno direito de ir e vir representa muito mais do que podemos supor. Pode parecer pouco, mas a tarifa zero representa um avanço em praticamente todas as demais frentes, de forma sutil ou radical. Isso não é pouco. A livre circulação das pessoas pelas cidades significa estabelecer uma outra lógica de relação com o espaço urbano. O impacto dessa medida simples vai provocar uma mudança radical na forma de ocupação do espaço urbano. Sem contar que, se isso for conquistado assim, pela pressão popular, vai ajudar a criar um novo paradigma de atuação política que pode servir de modelo para mudanças futuras. E vai abrir fraturas no oligopólio das empresas que exploram o transporte coletivo nas grandes cidades brasileiras. E vai comprar briga com a indústria automobilística que recebe subvenção estatal para entupir as ruas de carros e obter lucros exorbitantes. E ainda vai mexer no vespeiro das empreiteiras que constroem avenidas e viadutos para os carros e financiam as campanhas dos governantes que ameaçam cortes na saúde e na educação se houver redução das tarifas, jamais redução do lucro das empresas de transporte que exploram o serviço.

Entendeu porque o direito de mobilidade urbana é tão fundamental? Porque ele é condição de garantia para outros direitos. Podemos chegar num patamar ainda mais elementar, vou desenhar: sem transporte público as pessoas não chegam no hospital, as crianças não vão à escola, a periferia não freqüenta os equipamentos culturais do centro, muitos não conseguem sequer ir trabalhar. A configuração das cidades é excludente e a mobilidade é um privilégio que discrimina e segrega mais do que o salário. Mobilidade se tornou uma questão tão imprescindível quanto educação, saúde e segurança.

Além disso o foco na causa original recupera o caráter de um movimento de esquerda visionária e bate de frente com tantas pautas conservadoras, genericamente niilistas ou mesmo fascistas. Gritam palavras de ordem nas manifestações das mais variadas tendências e ideologias? Sim, mas alguma dessas reivindicações, tanto da direita quanto da esquerda tradicional é forte o suficiente para convocar uma manifestação expressiva como o Movimento Passe Livre conseguiu? Nesse momento, alguma outra pauta tem condições de mobilizar tantas pessoas, despertar tantas paixões? O momento é do Passe Livre. Maior que os combalidos sindicatos, que o desacreditado movimento estudantil, que os partidos de extrema esquerda, embora conte com o apoio da maioria deles, nenhum outro movimento tem condições de fazer o que os passelivristas fizeram e estão fazendo. Foi uma conjunção de fatores? Foi, mas isso não tira o mérito da articulação.

Acho um equívoco a equiparação com qualquer outro movimento. Eu participei dos Fora Collor na adolescência e não havia ali nem sombra do adensamento político e da tensão que existe agora. Tampouco o movimento das Diretas me parece ser um parâmetro adequado. Mas esse movimento eu não vivi.

O Movimento Passe Livre tem condições de se tornar um novo partido. Tem condições de criar um novo modelo de intervenção política. Tem condições de instaurar um sistema de democracia experimental, com participação ativa dos seus filiados através de votações virtuais para a tomada de decisão de seus representantes. Afinal de contas, para quem diabos vamos entregar nossas listas de reivindicações? O Movimento Passe Livre tem, neste momento, capital político para fazer muita coisa. A primeira talvez seja se organizar efetivamente em todos os estados. Mas eles podem também continuar simplesmente como um movimento horizontal de reivindicação da Tarifa Zero. Já terão feito pelo país muito mais que gerações inteiras. Eu, como cidadão e artista, confio e apoio a decisão que eles tomarem.

Postado em 01/07/2013 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

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