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Fundação Grande Sertão

“O Planalto Central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos dascordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior.”  Os Sertões, Euclides da Cunha

O sertão está imerso numa multiplicidade de imagens e idéias que compõe um imaginário muito amplo acerca do que seja realmente sua constituição. Tanto do ponto de vista etimológico quando conceitual é difícil definir o sertão. Pero Vaz de Caminha, na Carta de Achamento do Brasil já se referia ao termo: “Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão arvoredos” para designar o que se afastava do litoral, embrenhando pelo continente adentro. O país foi colonizado a partir da costa e essa dicotomia entre litoral e interior determinou o modo de vida e a forma como a região central do Brasil seria ocupada. O sertão sempre esteve por isso associado à idéia do desconhecido, do perigo, da aridez, do atraso. A ocupação desse território inóspito vai estar invariavelmente associada ao gado, essa mercadoria que se carrega por si só. Com o gado se forma toda uma cultura e a doação de sesmarias para essa atividade pela coroa portuguesa vai determinar uma estrutura fundiária que se mantêm, mais ou menos inalterada, até o os dias de hoje. A disseminação dos currais seguiu o fluxo dos rios para aplacar a sede do gado. Essa forma de posse das terras, longe do poder institucional da coroa, propiciou o surgimento de um poder paralelo conhecido como Coronelismo. Parece coisa da República Velha, década de 30 do século passado, mas as implicações sócio-políticas dessa estrutura organizacional se fazem sentir ainda hoje nas relações de poder em grande parte desse território.

“O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa

A idéia de sertão associada ao semiárido é portanto recente e não coincide com o espaço histórico e geográfico. Além de ser uma idéia muito vaga e imprecisa, o que impede uma correta apreciação da importância de sua riqueza e de seu patrimônio para a cultura, para a ciência e para a formação de nossa própria identidade, ainda está associada ao atraso, ao ultrapassado, ao obsoleto. Tanto que o cerrado, que cobre quase todo o sertão mineiro, ainda hoje é considerado, inclusive por agrônomos e engenheiros florestais, um bioma inferior em relação à Floresta Amazônica e à Mata Atlântica por exemplo, que justificaria sua derrubada para o plantio de capim, soja ou eucalipto.

Em Minas o sertão compreende o cerrado, com suas veredas, matas de galeria e campos rupestres, a caatinga já na divisa com a Bahia e a zona de transição entre esses dois biomas, chamado pelos nativos de carrasco. Os primeiros ocupantes dessa região, antes dos vaqueiros, foram os índios Caiapós vindos do sul do Piauí. O Grande Sertão, também chamado “os Gerais”, essa região mítica que abarca o norte e noroeste de Minas, sudoeste da Bahia e leste de Goiás, era denominado Currais da Bahia nos tempos das capitanias e sua ocupação lenta e árdua, seu relativo isolamento, sua inacessibilidade, contribuiu para que se mantivesse praticamente virgem desde o processo de povoamento do Brasil iniciado ostensivamente no século XVII até meados do século XX.

Mas desde os anos 50, com a criação de Brasília, o cerrado do Planalto Central do país vem sofrendo um processo de degradação acelerado, muito mais intenso e devastador que os 300 anos de ocupação com uma extensiva atividade agropecuária. Com a derrubada do cerrado perdemos irremediavelmente não só um bioma com toda sua riqueza de fauna e flora, mas perdemos parte de nossa identidade. Com um solo cada vez mais visado, não só pela monocultura agrária, mas também, e cada vez mais pela exploração mineral e mais recentemente pela descoberta de gás natural, o cerrado mineiro, o bioma com a segunda maior diversidade de plantas e animais do planeta, que possui também uma das maiores reservas minerais do país e uma das maiores concentrações gemológicas do mundo, está com os dias contados, sujeito aos limites e ao confinamento dos parques e reservas. De olho nesse tesouro escondido no solo o projeto desenvolvimentista em curso na região, sob alegação de progresso e modernização, constrói pólos industriais sem considerar o impacto sócio-ambiental nessas cidades, explorando a mão de obra barata e pouco qualificada de famílias que passaram gerações lidando com gado, agricultura de subsistência e extrativismo sustentável. Nesses pólos industriais impera hoje o crescimento urbano desordenado, a especulação imobiliária, o aumento da desigualdade e consequentemente da insegurança e da violência.

A água é outro elemento importante nesse contexto. Nascedouro de importantes bacias hidrográficas, o cerrado contém lençóis freáticos muito acessíveis e essa disponibilidade hídrica, responsável pela grande diversidade vegetal, tem atraído cada vez mais agricultores de soja e cana de açúcar, o que implica não só na redução da área de cerrado, mas também na contaminação do solo e da água com agrotóxicos de todos os tipos.

Precisávamos criar por tudo isso, sociedade civil e governo, um órgão, que seja fundação ou instituto, para dar conta da diversidade e multiplicidade da região descrita no “Grande Sertão: Veredas”. A riqueza de manifestações culturais, biológica e social desse espaço mítico que engloba o norte e noroeste mineiro merece uma atenção especial.

Esse órgão teria a função não necessariamente de preservar, mas de promover a conscientização dos moradores e freqüentadores, para que eles próprios se dêem conta da importância simbólica de suas vidas e do ambiente onde vivem ou freqüentam para a formação da identidade mineira e brasileira.

É urgente uma ação transversal, conectando os diversos pontos dessa teia de referências: desde o registro das tradições orais, de catalogação e fomento às manifestações simbólicas de cultura, passando pelas festas e grupos culturais em atividade mas também a culinária, o artesanato, a indumentária; deveria ser buscado também a integração dos parques e unidades de conservação, a reunião e sistematização dos estudos de caráter taxiconômicos da fauna e flora do cerrado, de impacto ambiental, de conservação das bacias hidrográficas, tudo isso sem perder de vista a ação irreversível das mineradoras, das siderúrgicas, das hidrelétricas e do agronegócio.

O planejamento das cidades inseridas nesse contexto precisa igualmente ser pensado dentro dessa perspectiva, buscando soluções sustentáveis e criativas para os problemas que hoje afetam, de resto, toda a região a partir do projeto desenvolvimentista levado adiante no Noroeste mineiro. Desde o turismo de base comunitária até o extrativismo consciente, passando pela valorização das manifestações culturais da região, mas também incorporando novas tecnologia, equipando bibliotecas públicas com obras de referência, implantando redes públicas de wi-fi, instalando sistemas de comunicação locais mais democráticos como rádios e TVs comunitárias, com inserção de conteúdo específico produzido na própria comunidade, geração de energia limpa a partir dos recursos hídricos e eólicos da região, melhoria das vias de acesso, entre tantas outras possibilidades.

Seria portanto imprescindível uma ação educacional, não somente nas escolas da região, mas em toda a rede pública do estado, tanto de caráter lingüístico e literário propriamente dito, dada a importância do léxico roseano como cristalização da fala que representa um povo e a própria nação, quanto aspectos geográficos, biológicos, históricos, políticos, filosóficos e sociológicos. Sem dúvida o romance reúne todo um universo, além dos desdobramentos e dimensões que ganha a partir de uma visada de campo. É necessário que todo aluno do ensino público do estado de Minas, idealmente de todo o país, tenham acesso privilegiado e diferenciado a uma das obras mais importantes da literatura universal, bem como possam conhecer e identificar características da região que inspirou o romance e que constituem elementos de sua própria identidade.

Outra questão importante é a participação efetiva dos maiores interessados, dos freqüentadores, dos pesquisadores, mas principalmente dos moradores dessa região na iniciativa, de forma colaborativa e democrática, seja através de um conselho, seja em assembléias e consultas diretas.

Poderia ser criada uma universidade livre do Grande Sertão, que reuniria e ordenaria o conhecimento a partir dos saberes científicos, artísticos, populares e do senso comum dessa região, metonímia de um espaço que abarca em termos geográficos quase metade do país.

Esse órgão teria de atuar em conjunto com as secretarias de estado de cultura, turismo, educação, meio-ambiente e desenvolvimento mas não poderia ser refém dos humores de um determinado governo. Por isso precisa ter uma atuação autônoma, inclusive com a possibilidade de buscar recursos na iniciativa privada ou encontrar outras formas de financiamento para suas atividades. Além disso seria fundamental articular as instituições e organismos do terceiro setor com governo e iniciativa privada, como prefeituras locais, associações de moradores, comunidades indígenas e tradicionais, assentamentos, pontos de cultura, cooperativas, museus, parques e reservas, ONGs, além da Fundação Pró-Natureza, Instituto Estadual de Florestas, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e todos os envolvidos em torno de ações inovadoras e criativas numa grande rede colaborativa e transdisciplinar.

Deveria ainda ter uma estrutura organizacional transversal, não-hierárquica, autogestionada e com unidades em cidades estratégicas, tanto pela localização quanto pela importância simbólica, como Morro da Garça, Cordisburgo, Buritizeiro, Várzea da Palma, Chapada Gaúcha, Arinos, Urucuia, Curvelo e Januária.

Seja como for está lançada a idéia, se é que ainda não existe, e que tenhamos vontade, força e tenacidade para vê-la realizada.

“Sertão: estes seus vazios. O senhor vá.
Alguma coisa, ainda encontra.
Vaqueiros?”
Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa

Postado em 25/02/2013 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

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