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Lei de Incentivo: entre o fogo e a frigideira

Em meados de agosto eu fui indicado para integrar a comissão de avaliação de projetos da Lei Estadual de Incetivo à Cultura. É uma tarefa ingrata: você tem de analisar e classificar os projetos que estarão aptos a captar o recurso para sua realização via dedução do ICMS junto à iniciativa privada. Este ano foram 1.839 projetos apresentados e 603 aprovados. Além disso você ainda tem como função fazer a readequação orçamentária dos projetos de anos anteriores que ainda estão em execução. Sem contar que fica, durante um ano, que é o tempo de vigência da gestão, impedido de apresentar projetos para a Lei. Isso tudo sem qualquer tipo de remuneração. Nem vale-transporte. São dezenas de reuniões e muitas horas solitárias “doadas” ao estado. Sua casa fica entulhada de pacotes, centenas deles, por algumas semanas e até seu vizinho, que nunca te cumprimetou, começa a te cobrar pela aprovação do projeto que ele mandou. Os recursos provenientes da Lei constituem hoje o principal motor da economia criativa no Estado, movimentando anualmente mais de 30 milhões de reais. Em função disso a pressão – tanto interna quanto externa– é enorme e durante todo o processo são gerados ruídos de todos os tipos.

A coisa é algo entre O Processo de Kafka e o Inferno de Dante. Como se não bastasse você é obrigado a ler muita bobagem, dos textos mais ingênuos aos mais megalomaníacos, dos (muitos) que usam o argumento ad misericordiam aos que se inflam tanto que dão a impressão que nem precisam mais de incentivo. Me lembro que um artista que queria espalhar pela cidade nada menos que 120 outdoors divulgando seu show. Outro propunha uma turnê internacional pelos cinco continentes. Por fim me lembro de um ainda que no orçamento previu, à guisa de transporte da equipe, a compra de um carro. Isso sem contar os projetos que são tão mal escritos que você não consegue compreender quais os motivos que levaram os responsáveis a propô-lo. Pode parecer engraçado, mas não é quando você tem prazos e critérios rígidos para cumprir. Às vezes falta bom senso, mas a impressão que fica é que a grande maioria nunca leu o edital.

Mas o pior talvez sejam aqueles que cumprem todos os critérios do edital mas que, mesmo assim, você desconfia da capacidade, ou pior, da honestidade de seus proponentes. Tem gente que nem mora mais em Minas mas que apresenta comprovante de residência daqui. Outros que incluem na equipe técnica o nome e os dados (hoje é possível levantar a ficha de qualquer um na internet) sem o consentimento dela. Ou ainda os que enviam o mesmo projeto em nome de pessoas diferentes, na tentativa de driblar o redutor obrigatório.

Ainda assim consigo vislumbrar alguns avanços no processo. O primeiro e mais visível deles é com relação ao número de projetos aprovados por proponentes de primeira viagem. Acho que estender os benefícios da Lei de Incentivo é fundamental para o arejamento da cena e essa foi uma das minhas batalhas na comissão, que é formada por outros 16 representantes de todas as áreas artístico-culturais. Claro que muita gente não foi contemplada, não dá pra entrar todo mundo. Você fica com o coração apertado ao ver muito projeto consistente perder pontos por não cumprirem exigências com as quais você próprio não concorda. A política de interiorização vem do Palácio da Liberdade, e caracteriza muito bem o populismo estratégico dessa gestão. Além disso nenhum dos membros da comissão tem poder, por si só, de vetar ou classificar algum projeto. É a dor e a delícia dos processos democráticos. São longas discussões, muita polêmica. O mais complicado é fazer o especialista de outra área, do patrimônio histórico por exemplo, compreender as peculiaridades dos projetos da área da música ou da literatura, e vice-versa. No fim, entre mortos e feridos, fica um incômodo, uma sensação de impotência diante do resultado. Ao mesmo tempo você se sente também como se tivesse cumprido com seu dever e percebe que involuntariamente passou a conhecer a cena de uma forma muito mais ampla. Dá pra fazer um diagnóstico mais preciso das demandas, visualizar com nitidez as trajetórias dos artistas que você acompanha no palco. Gosto de ter essa perspectiva de movimento de uma cena. Dá pra apontar também com mais objetividade algumas falhas no processo. Espero que com essa experiência – que espero ser a última dessa natureza – eu possa contribuir para o aperfeiçoamento da Lei nos próximos anos. Deixei lá minhas sugestões, vamos ver o que vai acontecer.

Postado em 28/12/2006 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

(1) resposta

  1. marcelo santiago
    19/08/2007 de 22:05 · Responder

    gostei do texto.
    a lei de incentivo é mesmo um assunto polêmico, existe muita discussão sobre os projetos aprovados e tbm sobre alguns rejeitados.

    são muitas as regras e o problema é que muita gente a vê como um negócio.

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