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poesia operária

Makely Ka acaba de publicar o seu segundo livro, Egoexcêntrico, pela Sêlo Editorial dirigida por ele, e lança o cd, Outra cidade, com Kristoff Silva e Pablo Castro. Nesta conversa com o Estilingue, Makely fala sobre mercado, trabalho e poesia.

Como é sobreviver de poesia hoje?

Acho que o poeta tem que ter aptidão até pro mercado. A gente está numa economia de mercado. Hoje não dá pro cara ser um poeta marginal, fazer os poemas mimeografados. Ele tem que saber que está dentro de uma estrutura, que ele vai ter que fazer um livro que vai estar na estante ao lado de um livro da Companhia das Letras. Senão ele arrisca chegar aqui na mesa vendendo o livrinho dele e a gente expulsar o cara daqui. Você vai ter que ser um bom profissional, competente. Hoje não é mais admissível fazer um trabalho que não seja comercialmente viável, essa idéia faz parte do ideal romântico do poeta inspirado. A grande questão que se coloca hoje, pra minha geração, principalmente, é que a gente tem os meios, tem a Internet, tem o mercado, que é pequeno, mas suficiente. Se eu penso que aqui em BH tenho 200 pessoas que possam se interessar pelo meu livro, eu tenho que fazer ele chegar nessas pessoas. Então não adianta ele estar na Leitura Megastore. Ele tem que estar nas pequenas livrarias porque eu sei que é aonde meu público vai. Eu tenho que saber aonde ele vai. O pessoal não vai lá em casa pra buscar o livro.

Há um problema na cultura brasileira hoje, em que nada funciona se não estiver numa grande estrutura de mercado que garanta a produção e sua veiculação na mídia. Como fica então esse negócio de poesia e mercadoria?

Acho que tem uma mídia paralela, que é um espaço que a gente tem que ocupar. Eu trabalhei muito tempo em rádio comunitária, que é um canal de circulação. Acho que tem as televisões que não são a Globo, mas onde você consegue fazer uma divulgação e atingir o seu público. Tem a Internet, que é um veículo de comunicação anárquico, nesse sentido de quem você pode atingir. Agora, é sempre restrito, localizado. Mas tem uma rede por trás, por baixo disso. E eu acho que essa rede a gente tem que usar até por uma questão de resistência e sobrevivência, porque a gente precisa vender. Nesse sentido é mercantilista, sim. Mas a gente também não quer vender com a Gisele Bündchen na capa, sabe? Sou eu quem está aqui na capa! Quer dizer, é um grau de mercantilismo que a gente tem que se sujeitar. Não dá pra eu falar assim: “Poesia: não vou comercializar meus sentimentos”. Então vai trabalhar atrás de um balcão, oito horas por dia, vendendo sua alma pro patrão! Meus poemas eu vendo porque quero viver deles. Mas é muito delicado, esse limite. Eu não faria propaganda de cerveja, por exemplo, pra vender o meu livro. Mas, por outro, lado eu não recusaria um convite da Globo pra vender o meu livro no Programa do Jô. Acho que a gente tem que ocupar esses espaços, mas a gente precisa fortalecer outras bases. Pequenas gravadoras, pequenos selos, formas de divulgação independentes. Micro, mas que vão criando uma rede.


A gente sente um eco de Maiakóvski nos seus poemas. Você acredita, como ele, no poeta-operário?

Essa questão do operário é fundamental mesmo, é um operário: o poeta trabalha, dominou o repertório, estudou. Ele é igual a um pedreiro que trabalha com tijolo. O poeta trabalha com a palavra e com ela constrói. E eu gosto de trabalhar por encomenda, é um exercício. Drummond fez isso, João Cabral também. Pode não sair um texto muito inspirado, mas se você domina aquilo que você está trabalhando você vai lá e faz, porque é um processo de suor mesmo e o Maiakóvski é a minha maior referência e acho que é o grande poeta do século XX, é um dos caras que expandiu as fronteiras. Era um grande orador, trabalhava com música, teatro cinema, arte gráfica, é um cara muito importante para a poesia. Até pela postura ideológica dele, porque se você nasceu, você já é político. Se você começa a escrever não tem essa coisa de isenção. Então ele é um cara fundamental pra expandir esse limite, um cara foda, que tudo que escreveu é da pesada. Eu me inspiro muito na figura dele e acho que essas referências são fundamentais. Em vários aspectos da vida dele, ele transgrediu, ele é o representante pra mim dessa poesia mais aguerrida, mais transgressora, que acabou gerando frutos em vários lugares. Acho o Leminski, por exemplo, o nosso poeta mais maiakovskiano, nesse sentido de agitação cultural, de fervor, de paixão pela coisa, de ideologia forte. Por isso que eu não acredito nessa geração de poetas que tem hoje.

Até que ponto o erro contribui para a sua poesia?

É como disse o Oswald: “a contribuição milionária de todos os erros”. Acho que essa assepsia de certos poetas está de certa forma relacionada a uma paranóia de não errar. Por exemplo, esse livro, o Egoexcêntrico, está cheio de erros, graças a Deus. Alguns deles me surpreenderam. Tem um poema aqui que fala de uma batalha bélica na biblioteca. De repente o poema fala “os livros ditáticos” (era pra ser “didáticos”). São erros que acabam contribuindo, realmente dá um outro sentido. Se eu reeditar, esse erro eu não vou corrigir. Acho que esse medo de errar acaba mediocrizando, porque não é só o medo de errar. O problema aqui não é cometer um poema que seja um erro, acho que todos os grandes poetas têm momentos execráveis. Todos eles, de Dante a Homero, se arriscaram. Se o cara tem medo de errar, ele sempre vai ficar no mediano. É como aquela frase: “Se você se arrisca em alturas dantescas, você pode tomar um tombo homérico”, ou o contrário, se quiserem.

Pra onde a poesia caminha, então?

Olha, eu sempre achei que a poesia sempre esteve muito bem (ou mal) acompanhada pela música, pelas artes plásticas, pelo vídeo e até pela literatura. Mas eu acho que a gente está num momento em que não dá pra você ter a ilusão de que o livro continua a ser o único, o principal e insubstituível. Eu acho o livro insubstituível, gosto do tato do livro, gosto de pegar, tenho prazer tátil, mas, nessa nova geração, eu vejo que há cada vez menos interesse pelo livro, pelo menos por esse suporte aqui, físico. Quando eu botei na divulgação deste livro alguns poemas em lambe-lambe pela cidade, eu tive um retorno muito legal de muita gente que esteve com o livro nas mãos e não deu a mínima, acho que não abriram o livro. Acho que o livro também tem esse ranço, essa coisa do acesso difícil. Então, quanto mais eu puder botar poesia no rádio, na televisão, no muro, melhor pra poesia, não é?


Alguém ligou por causa dos classificados?

Os poemas do capítulo Classificados foram publicados ao longo de três ou quatro meses, a maioria na seção de Empregos do jornal Balcão. Fiz essa brincadeira pra chamar atenção para a situação do poeta dentro do mercado de profissões. Quer dizer, apontar para o fato de que ele é um profissional da palavra, um operário do signo, um trabalhador como qualquer outro. Recebi telefonemas por todos os anúncios. Muita gente desesperada para conseguir um emprego qualquer. Tinha de dizer que a vaga já havia sido preenchida, não dava pra explicar o meu intuito naquela situação. Algumas mensagens eu mantive gravadas na secretária eletrônica e cheguei a pensar em incluir no cd que acompanha o livro. Desisti porque seria muito complicado conseguir a liberação dessas gravações pelas pessoas que ligaram, muitas anônimas. Algumas ligações foram hilárias, como um sujeito que dizia ser um poeta multimídia de ponta, com quarta série primária e tudo, apto para assumir a vaga. Quando eu disse que a vaga tinha sido preenchida ele ficou desapontadíssimo, falou vários poemas pra me provar que era o mais indicado. O anúncio que recebeu mais ligações foi o do ascensorista. Dezenas. Mas houve também poetas marginais inéditos e senhores distintos à procura de relacionamentos intertextuais!

Mais uma coisa: Egoexcêntrico, inclusive o Makely?

Todo criador é egocêntrico, quer ter sua obra lida, ouvida, assistida, discutida, enfim. Por hipocrisia ou muitas vezes por estratégia, poucos assumem. Mas, no fundo, toda obra é a tentativa de satisfazer o ego do seu criador. Sempre frustrada. Daí surge o desejo, a necessidade de continuar produzindo. A criação artística é um poço das Danaides. Pus o meu umbigo na capa do livro e nele trabalho o tempo todo com jogos de espelho (a inversão da ordem das páginas, as anamorphosis, os duplos livro/cd, a lâmina de acetato…). Narciso não vê o que não é espelho. Ao mesmo tempo, há um pequeno detalhe no título do livro que aponta para outra leitura, que é o prefixo ex. Isso tira a expressão de centro, joga pra margem. Excêntrico é aquilo que não habita o centro. Então eu faço o tempo todo uma auto-referência, mas o ex induz a uma volta de 180 graus sobre os calcanhares de Aquiles e o outro encontra não mais o eu-autor, mas o eu-leitor, ou seja, a si mesmo. O espelho do meu egolivro reflete o rosto de quem o lê – e o gosto de quem eu li. Por outro lado, Ego Excêntrico se refere também a todo ego periférico, ou seja, se refere a todo artista que se formou e desenvolve seu trabalho à margem do centro, seja aqui na América do Sul, seja em Papua Nova-Guiné, em português ou em iídiche. A excentricidade é, portanto, um traço de identidade local, mas universalizante, não-conformada ao modelo central estabelecido pelo colonizador europeu num primeiro momento, e pelo recolonizador norte-americano, mais recentemente. Então, um ego excêntrico é também um ego que resiste culturalmente ao egoísmo “quase” hegemônico do centro.

entrevista publicada no jornal estilingue número 2 literatura e arredores em 2004

Postado em 08/02/2007 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

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