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Uma cabeça de burro e outras tantas de avestruz

Dias atrás assisti a um debate onde estavam presentes jornalistas (de jornal escrito e de rádio) conhecidos da cena local. O tema era a produção musical independente (sic). A coisa ia como sempre pelo caminho das constatações óbvias por parte da mesa, das reclamações lugar-comum por parte do público – formado por músicos e produtores -, do consenso inócuo de que a cena fervilhante é em Cuiabá, Recife ou Rio Branco (na verdade não importa onde seja, importa que não seja aqui) e a sacralização da panacéia tecnológica. Tudo bem, eu não sou nenhum brucutu virtual, tenho uma página no myspace, comunidade no orkut, vídeo no youtube, site pessoal, esse meu blogue atualizado sempre que dá, como aliás a grande maioria dos músicos de Cuiabá, de Recife e até de Belo Horizonte. Mas a tecnologia é ferramenta, ela por si não resolve a vida de ninguém, muito menos alavanca sozinha a cena de um Estado. Também não sou cabotino a ponto de ignorar o movimento musical – muitas vezes menos fervilhante do que querem fazer crer os entusiastas de plantão – de vários pólos culturais espalhados pelo país afora. Mas quando eu ouvi um dos jornalistas na mesa dizer que o problema com Minas é que há aqui alguma coisa enterrada não pude deixar de pensar que talvez seja a cabeça deles, como avestruzes.

Desde pelo menos a copa de 50 que essa expressão ganhou no país uma conotação simbólica com uma carga trágica irremediável. Diziam que havia sob as traves do gol defendido por Barbosa no segundo tempo da final contra o Uruguai uma cabeça de burro enterrada. Era a única explicação possível para a incrível derrota da seleção brasileira, favorita ao título e invicta na competição. Derrota que marcaria profundamente a geração de nossos avós.

Acontece que a cena musical – pode até ter sido assim no temo de nossos avós – não é uma competição. Aliás, graças à própria tecnologia ela é cada vez mais cooperativa, comunitária, baseada em redes de troca e compartilhamento. Outra idéia falsa incorporada ao folclore da cabeça de burro enterrada é a de que é preciso ter sorte para vencer no mercado musical. Creditar à sorte o sucesso na carreira de um artista que trabalha arduamente é no mínimo leviano. Claro, um pouco de sorte e canja de galinha não faz mal a ninguém. Mas não é no campo das felizes coincidências que se dão as relações de mercado no novo modelo de negócios que agora se instaura.

Por fim, é bom deixar claro que a cena local vai bem obrigado. Um viajante que passasse desavisado por aquele debate poderia sair com a sensação de que a cena musical em Minas está à beira da falência, que não acontece nada digno de nota por essas bandas há alguns anos. Novamente a metáfora da cabeça de burro resume bem a falsa idéia de que perdeu-se algo num passado áureo. Que hoje vivemos à sombra de períodos realmente férteis, criativos. Mas esse messianismo cristão não vinga após uma observação mais atenta da cena. O problema é que a maioria dos jornalistas, preocupados que estão em assegurar seus empregos, enfiados com a cabeça na terra qual avestruzes assustados com os novos paradigmas de mercado, só conseguem perceber que há uma cena em ebulição depois que ela já ferveu. Mas quem vive na cena e para ela, sabe muito bem que a ebulição começa muito antes dos 100 graus Celsius. Quando chega essa hora já virou fumaça!

Pois eu não conheço no país outra cena tão rica e diversificada como a nova cena musical mineira. Só que você não vai ouvi-la repetindo até cansar nos rádios, não vai ler críticas derramadas nos jornais, não vai assistir programas nos horários nobres das principais emissoras nem vai ver milhões de pessoas se acotovelando nos shows. Mas o caldo está engrossando e vai ferver logo, logo.

E ficam duas impressões de quem tem algumas centenas de horas de debates, seminários e conferências sobre música independente: primeiro que cada vez mais há menos fórmulas de sucesso para um artista. Cada um faz o seu trajeto, descobre seu caminho, abre seu próprio negócio, cria com seu grupo sua associação, sua cooperativa. Não há mais receita de bolo. A outra impressão é de que a novidade musical, se é que podemos falar nesses termos, não vai ser televisionada, não vai estampar as primeiras páginas dos cadernos culturais, não vai ser noticiada pela grande imprensa, pelo menos não num primeiro momento, porque ela é muito mais sutil, muito mais subliminar e muito mais provisória. E isso não é um problema, é uma virtude da nova cena.

Por último gostaria de sugerir aos organizadores de palestras, seminários e todos esses modelos de exposição de idéias herdados da academia, que talvez fosse mais interessante e produtivo propor ações coletivas. Ao invés de cada um sentar na mesa diante da platéia e falar de sua experiência, dar sua receita ou fazer daquele espaço seu muro de lamentações, porque não um grupo para realizar ações efetivas nas áreas propostas? Porque não colocar em prática os modelos de ação colaborativa? Porque não disponibilizar os contatos e aproximar as pessoas interessadas umas das outras? Afinal está tudo mudando, vivemos um período de superação de modelos ultrapassados e eu sinceramente não sei de nada mais ultrapassado que uma palestra!

Aproveito aqui para indicar duas colaborações à mesma discussão. Uma delas é o dossiê feito pelos infiltrados Estrela Leminski e Téo Ruiz no “Encontro Nacional da Música Independente”(sic), que ocorreu em Curitiba semana passada. Outra é a cobertura especial feita pelo Marcelo Santiago do Meio Desligado , o blogue mais antenado da cena mineira, dos debates que ocorreram durante o Abril Pró-Rock em Recife. Vale o clique!

Postado em 20/04/2008 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

(4) respostas

  1. Rix
    20/04/2008 de 17:17 · Responder

    Muito bom o texto, Makely.
    Estranho que as pessoas meçam o sucesso de uma cena, ou mesmo de uma banda, pelo tanto que ela aparece na midia. Acho que isso ainda é esperado de ritmos historicamente ligados ao pop (leia-se midia), como o rock. Tirando os rótulos dessa história, eu acredito que a música está amadurecendo.
    Alguns estilos já desfrutam dessa maturidade. A gente não vê, por exemplo, músicos de jazz tristes por que não aparecem na Globo, ou na MTV.
    A nossa sobrevivência vai ser mais ou menos assim, eu acredito, nos nichos. Todo mundo tem que aceitar que com a oferta de artistas que temos hoje, só vai fazer sucesso como há trinta anos quem tiver muito dinheio pra investir, o que talvez seja totalmente desnecessário.
    Vamos fazer música pra quem quer ouvir, pra quem quer conhecer. Vamos educar e construir uma coisa mais sólida. O modelo de “sucesso” agora é outro. Não acha?

  2. Adenilson Barcelos de Miranda
    26/04/2008 de 18:47 · Responder

    Quando você fala de ações, arrepio. Falta desta gente é sair do altar do especialista e parar de masturbar idéias e partir para ações, ações que permitam somar, agregar os funcionários da arte. Enquanto eles não fazem, a gente se organiza por suor e prazer.

  3. Patris
    29/04/2008 de 15:50 · Responder

    hahhha, adorei… imagine você falando seu texto com minha voz como espelho. Por que eu CONCORDO COM TUDO!!! Abraços

    Patris

  4. quixotesco
    06/06/2008 de 20:47 · Responder

    Exatamente.
    O que mais me deixa triste são os “artistas indepentes” (sic)que desejam apenas estourar nas paradas e se tornarem massificados e mainstream. Infelizmente existem. Costumam ser mais jovens que a maioria das pessoas sérias que a gente encontra por aí.
    Que reclamam da mídia apenas poeque não são eles que estão sob os holofotes.
    Quem entre nós, tem algma verdade universal?
    Ninguém.
    Ter seu público é uma coisa. Se tornar um modismo-massificante-capitalista-monopolizador como foram Cazuza, Legião ou Raul Seixas é um crime à música. Admiro quem n~çao quer fazer sucesso, mas apenas falr ao seu público e ampliá-lo dentro dos limites das relações de identidade compartilhada.

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