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Barro Branco e Fazenda São Francisco

Leito seco do córrego dos Porcos

Poucos quilômetros depois da Barra do Rio-de-Janeiro passei pelo lugar indicado pelos moradores onde costuma haver sinal de celular. No ponto mais alto da região, onde há um tronco caído de gameleira. Nem no tronco tampouco em cima de uma árvore consegui sinal. Mais alguns dias sem comunicação.

Cheguei a Barro Branco, distrito de Lassance, no meio da tarde, depois de atravessar o pequeno córrego do Atoleiro, que deságua no São Francisco. O povoado não tem mais que vinte casas, com uma pequena igreja  na parte mais elevada dando visão para a grande cadeia de montanhas ao fundo. Vinha com a indicação de Dona Liquinha para procurar a Marli, sua cunhada, irmã do Nem. Percebi uma rede de contatos que vai se formando na estrada, uma indicação vai estabelecendo as seguintes e assim sucessivamente. Se você ganha a confiança das pessoas numa localidade é bem provável que na próxima seja bem recebido. Dona Marli e seu marido mantém uma pequena venda ao lado da casa, praticamente uma janela que serve de balcão no fundo da varanda usada como área de convívio do bar, com mesas e cadeiras dispostas ao longo desse corredor. Fui atendido por seu filho, Pablison, que me ofereceu um pouco de água. Dona Marli, uma jovem senhora morena, de traços fortes, me recebeu a princípio desconfiada. Pouco depois chega seu marido, o Seu Wilson. Vendo minha bicicleta ele se lembra da garota que passou por lá no ano anterior, quando ele teve de abrir o bar no meio da noite para atender os cliente que chegaram de forma inusitada vindos do Rancho do Nem. Seriam as últimas notícias que teria da Ana Luísa até Chapada Gaúcha.

Falei das referências que trazia, mas Dona Marli continuava reticente.  Ainda assim me ofereceu café e trouxe biscoitos de forno. Fiquei observando o movimento, respondendo as dúvidas, buscando informações sobre o caminho que deveria seguir. A partir de Barro Branco abrem-se os Gerais, como me disseram. A serra que se avista a partir da Igrejinha de São Sebastião é a Santa Helena, que compõe a cadeia do Espinhaço. Preciso contorná-la para chegar a Várzea da Palma, meu próximo destino.

Vou detalhando meu mapa mental com as informações coletadas. O caminho mais provável contorna a serra passando pela vila da Gerdau, no meio do eucaliptal. É também o mais longo. Há um atalho por entre as montanhas, mas ninguém dá certeza se é possível passar por ali de bicicleta. É trilha de animais, abandonada há muitos anos.

No bar ouço muita conversa de pescadores, me dizem que pescavam no Atoleiro muita curimba, mandi-amarela, mandi-branca, mantrinchã, piau, traíra, surubim e dourado. Hoje surubim e dourado quase não se encontra mais.

Córrego do Atoleiro

Seu João chega calado e puxa conversa. No fim me convida para passar na sua casa e tomar um café. Decido passar a noite ali e comunico Dona Marli, pedindo permissão para montar a barraca ao lado da casa. Ela não só permite como oferece o banheiro da casa para tomar um banho quente. Quando volto das fotos que fui fazer na igreja passo na casa do Seu João, que me mostra os móveis de madeira que produz: cadeiras, mesas, estantes, poltronas. As fotos dos filhos ficam ao lado da televisão ligada. Ele diz que posso dormir num dos quartos se quiser, que ele está sozinho em casa. Nos pequenos povoados é muito comum encontrar uma população de idosos e aposentados. Os mais jovens e as crianças vão embora para estudar e trabalhar. Deixam só fotos e saudades. E voltam de vez em quando.

Me despeço do Seu João e volto para a casa da Dona Marli, tomo um banho e passando pela cozinha encontro um prato de comida quente e cheirosa me aguardando. Quando começo a retirar o equipamento dos alforges para montar a barraca Dona Marli intervém e diz, com o consentimento do marido, que não vai permitir que eu durma ali na varanda naquele frio. Já arrumou a cama no quarto do filho pra eu passar a noite.

Volto à casa do Seu João para agradecer o convite. É uma situação um tanto curiosa: há poucas horas estava procurando um local para armar a barraca e, naquele momento, tinha dois convites de moradores para passar a noite numa cama confortável. Teria de recusar um, não sem um certo constrangimento. Optei por ficar na Dona Marli não só porque foi o primeiro lugar onde parei e fui bem recebido, mas também para manter o fio dos contatos iniciados na Barra do de-Janeiro e, principalmente, continuar ouvindo as conversas dos freqüentadores do bar, o local de convívio social daquele povoado esquecido no sertão.

Fiquei ali na varanda ouvindo as conversas, fazendo uma ou outra anotação, eventualmente respondendo ou fazendo uma pergunta. Até que o bar fechou e todos se recolheram. Fiquei ainda um tempo do lado de fora, contemplando aquela noite absurda com um céu que não conseguimos mais enxergar nas grandes cidades. Estava há centenas de quilômetros de casa, sendo recebido por estranhos como uma pessoa da família. Esse cuidado me marcou profundamente durante toda a viagem. Nessas situações em que você está cansado, faminto, vulnerável, receber esse acolhimento afetuoso dá uma outra dimensão para o sentido de solidariedade. Ao mesmo tempo em que você tem de se desfazer do orgulho, tem de pedir um favor, uma informação, um copo d’água, um prato de comida, um lugar para pousar. Não são serviços que estão à venda, aquelas pessoas não vão te receber melhor ou pior em função da sua capacidade de pagar ou não por aquilo. A relação se dá em outro nível de entendimento, são outros parâmetros de negociação. É uma relação de confiança e respeito que se estabelece a partir de critérios subjetivos, mais sutis, que compreendem desde o jeito de falar, de agir, os pequenos gestos, a condição em que você e aquelas pessoas se encontram.

No dia seguinte tomei o café na varanda e fui arrumar o equipamento para partir. O Brício parou o caminhão ao lado do bar. Um tipo bonachão, curioso, prestativo. Começamos a conversar e ele me disse que conhecia uma pessoa que poderia me dar uma indicação mais precisa do caminho através da Serra Santa Helena. Sua casa estava na beira da estrada onde eu deveria passar. Combinamos que ele seguiria na frente e me aguardaria com o informante para um café.

Parto de Barro Branco com recomendações de Dona Marli, como se fosse seu filho. Alguns quilômetros adiante chego na casa do Brício, ao lado da estrada.  Logo em seguida chega Seu Clóvis, de moto. Ao saber que estou fazendo o percurso de um personagem do “Grande Sertão: Veredas” ele me conta que é neto do Gregório, o dono da boiada que acompanhou Guimarães Rosa na mitológica viagem de 1952. Estamos na região da antiga Fazenda Atoleiro, hoje chamada Rio de Janeiro.

A conversa fica animada, regada a café e queijo. Dois assuntos orbitam, além da minha própria viagem e o caminho que deveria seguir: a descoberta do gás natural na região, que coloca todos em polvorosa e os ataques de onça. O Brício afirma que o maior investidor na exploração do gás é o dono da Microsoft, o empresário norte-americano Bill Gates. Falam dos testes realizados, das expectativas. Pergunto o que eles esperam dessa iniciativa e eles me dizem que a primeira mudança é a melhoria das estradas. Todos concordam também que o gás vai gerar empregos, ainda que provisórios. Insisto nas perguntas sobre os problemas do crescimento descontrolado, a falta de planejamento e o impacto ambiental que uma atividade de exploração como essa podem gerar. É a deixa para entrarmos irremediavelmente no assunto das onças. Os dois criam bezerros para venda e são constantemente atacados pelas gatas. A partir daí começam a desfilar uma infinidade de casos, encontros na estrada, caçadas, perseguições. Foi a primeira vez que ouvi a história – que se repetiria durante toda a viagem – das onças soltas pelo IEF na região.

Já eram quase 11h e o Seu Clóvis me convida para almoçar na sua fazenda, do outro lado da estrada. Entramos na casa centenária e sua mulher, Dona Alexandra, estava na cozinha com o almoço pronto. Seu Clóvis é homem culto, foi seminarista em Santos Dumont, conhece latim, grego, inglês, francês, estudou engenharia em Ouro Preto nos anos 60, quando abandonou para ficar cuidando dos pais na fazenda. Não se arrepende de não ter continuado os estudos.

Depois do almoço com arroz, feijão e bife de boi meu anfitrião me acompanha até o início da estrada, passando por trás de sua fazenda, onde eu deveria pegar a trilha para subir a serra. A referência eram as grandes torres da rede de alta tensão. Parti.

Da fazenda do Atoleiro eu conseguia avistar a trilha por entre a montanha que eu deveria subir. Mas mesmo com essa visão e seguindo todas as indicações eu não encontrei a entrada. Fiquei três horas rodando dentro de um eucaliptal e depois no cerrado fechado procurando o início da trilha até que desisti e voltei para a estrada batida. Depois verifiquei no Google Earth que cheguei muito próximo dessa trilha, cerca de 50 metros, mas não consegui transpor a vegetação com a bicicleta.  Meu planejamento era chegar naquele dia até a Fazenda São Francisco, lá pedir pouso e no dia seguinte alcançar Várzea da Palma.

Sede da Fazenda São Francisco

O resultado é que acabei rodando quase 30 quilômetros a mais. Nessa estrada trafeguei entre muitas carretas que recolhiam os troncos de eucalipto derrubados de uma grande área. Em determinada altura encontrei o Marquinhos, funcionário da Gerdau que trabalhava solitário numa torre de observação há 30 metros do chão. Era final de tarde e ele já estava no solo, aguardando o veículo que iria buscá-lo. Me arranjou um pouco de água fria e completei uma das garrafas. Ele passava os dias ali, no alto da torre atento a possíveis focos de incêndio na plantação de eucalipto. Me informou que a fazenda que eu procurava estava a uns 10 km adiante. Segui em frente e cheguei na entrada da fazenda quase na penumbra, exausto mas exultante. Fui parar numa das carvoarias onde me informaram o caminho até a sede. Mais cinco quilômetros voltando no sentido contrário e entrando à esquerda na encruzilhada que eu ignorei. Nesse caminho parou uma caminhonete com alguns trabalhadores e o motorista me perguntou onde eu estava indo, se conhecia alguém na fazenda, o que estava fazendo ali. Depois de respondido o questionário me ofereceu carona, de forma quase impositiva. Diante da minha recusa seguiu adiante, um tanto incomodado.

Cheguei na sede da fazenda já estava escuro e quem me recebeu foi a Geralda, uma funcionária que cuidava da casa principal. Ela me informou que o gerente da fazenda, o César, havia saído para levar comida para alguns trabalhadores e logo estaria de volta. Fiquei ali nos degraus da varanda espaçosa daquela Casa Grande aguardando a volta do capataz. Ele chegou meia hora depois e me recebeu cordialmente, mas sem sorrisos. Era jovem, em torno de trinta e cinco anos e chegou junto do filhos pequeno, o irmão e outros familiares. O garoto logo se interessou pela bicicleta e em alguns minutos o clima pesado se arrefeceu. Outro encarregado chegou ali, um senhor mais velho, sócio do Silveira, o dono da fazenda que morava em Belo Horizonte. Por fim me ofereceram uma marmita que havia sobrado e o César me indicou um galpão onde poderia passar a noite junto com os outros trabalhadores. Me explicou que pela forma como cheguei, com o farol aceso e o suposto motor da moto desligado, ele deduziu que fosse ladrão. Ele havia me visto passando e, de fato, percebi um carro parado na estrada, já próximo da sede, mas não parei porque parecia não haver ninguém dentro, ou então quem estava dentro não queria ser visto. Me lembrei nessa hora da caminhonete que passou por mim e ofereceu carona. Certamente eles haviam comunicado minha chegada e alertado para o “risco”.

Já instalado no galpão com os trabalhadores, comecei a entender o funcionamento de uma grande fazenda como aquela. Havia quatro camas e uma delas estava vaga. Muitas outras ficavam desmontadas, empilhadas junto com outros equipamentos no espaço que devia ter aproximadamente 50 metros quadrados. Todos ali vinham de outras regiões do estado e estavam ali provisoriamente. Foram contratados para derrubar o cerrado. O processo é simples e o resultado devastador: dois tratores arrastam uma corrente que vai derrubando tudo que encontra pela frente. A maioria das árvores é arrancada, mas algumas quebram junto à raiz. Depois os tratores retornam para finalizar o desenraizamento dos arbustos que resistiram. Em seguida procedem à triagem da madeira nobre que vai ser aproveitada e o restante vai para os fornos ser transformada em carvão. O solo fica livre para virar pasto ou plantação de eucalipto. Simples assim.

Tomei um banho frio e fui me deitar cedo, antes das 21h. Todos os outros já estavam dormindo. Fechei os olhos e dormi com a imagem da corrente arrastando animais e plantas no cerrado. Levantei às 5h com todos os meus companheiros de quarto. Tomei um café na mesma varanda do dia anterior na casa principal. Enchi as garrafas de água e Geralda ainda me arrumou um saco com pães que ela preparou para eu levar. Todos já haviam saído para a lida. Parti.


Fazenda Jatobá

Andei ainda muitos quilômetros dentro da Fazenda São Francisco. Chão de cascalho e areia entre pastagens. César, o gerente-capataz havia me dito que são 22 qilômetros só de margem com o rio São Francisco. Passei pelo rio Tapera e pelo córrego Jatobá  onde encontrei dois simpáticos senhores trabalhando na instalação de uma roda d’água: Seu Adão e Seu Silvano. Os dois, moradores das proximidades daquela Fazenda Jatobá, me tomaram meia hora de boa conversa. Os filhos moram na cidade e eles resistem ali. Adão me dá detalhes do caminho e depois vem em meu socorro para desfazer um mal-entendido. Eu havia parado alguns metros à frente do curral de madeira trançada da velha fazenda para fazer uma foto, da beira da estrada. Alguém de dentro da casa estranhou aquela figura ali, apontando uma máquina fotográfica em sua direção e gritou alguma coisa que eu não entendi. Só percebi o incômodo gerado quando Adão se aproximou tentando explicar o gênio difícil do irmão. Dali restavam ainda 45 quilômetros até a cidade. Saí das pastagens e entrei novamente no cerrado, chão de toá e areia. Passei pelos córregos Riachinho, Porteira, Porcos e Mosquito, esses dois últimos secos. Subi a serra e entrei numa imensa floresta escura de eucaliptos gigantes.

Houve um momento, numa encruzilhada desse caminho entre a Fazenda São Francisco e Várzea da Palma, que parei para comer, já era tarde – eu estava almoçando cedo nos últimos dias já que ali o hábito é cear às 10h30 – e meu almoço foi o pão que havia ganhado da Geralda na fazenda, algumas castanhas e um pouco de água, o resto que havia no cantil. Estava muito cansado de empurrar a bicicleta nos bancos de areia, a marcha leve não funcionava mais e as subidas foram ficando cada vez mais difíceis. Dentro dos eucaliptais há muitas entradas que levam a lugar algum e não tinha certeza se aquele era mesmo o caminho. O GPS indicava apenas que eu estava numa rota “não transitável”.

Como não havia placas nem marcas de pneu, só rastro de animais, a única referência era a indicação do seu Adão, que me disse para entrar à esquerda logo após a linha de alta tensão no alto da serra. Esse seu Adão me pareceu extremamente familiar, embora eu nunca o tivesse visto. Acho que ele me lembrou meu pai e me inspirou confiança. Ou talvez eu quisesse dar a ele esse voto de confiança porque não havia outra opção. O único som era do vento nas folhas dos eucaliptos. Há momentos em que você fica totalmente vulnerável. Não é difícil errar o caminho, ficar sem água, a bicicleta quebrar, você se ferir. E é aí que descobre uma força que ignora. Pensei na minha família, nos meus filhos, nos amigos, nas pessoas que conheci esses dias, e chorei muito. Foi choro sem anúncio, como um temporal que desaba de repente. Mas não havia tristeza, era um choro de plenitude, como água molhando a terra seca.

Visão de Várzea da Palma ao fundo

Montei na bicicleta e rompi a serra até avistar ajuntamento de cidade: era Várzea da Palma, o odômetro marcava 100 quilômetros desde Barro Branco e o sol estava na casa do quarto decrescente. Foi uma epifania, esses raros momentos em que você tem certeza de que pode fazer qualquer coisa da sua vida.

Postado em 09/09/2012 Cavalo Motor

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

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