Texto do Encarte – Braulio Tavares
Aqui se ouve um sertão de metais pesados, raspando uns nos outros, lancinantes. Aqui tem trava-língua, estacato, trocadilho. Cada consoante como uma conta num enorme ganzá. Espirais de DNA girando como redemoinhos gêmeos. Aqui tem contraponto num dueto de campo e contracampo. Tem verso mandado, verso pago, verso devolvido, cada verso um degrau numa escada, onde tem que saber pisar em todos. Cantigas sacudidas, rodadas, onde todos se soltam em danças, e a voz canta uma história estranha. Aqui a canção dissonante, intermitente, atravessada, em treliça, vindo de todas as direções com vozes parecidas, a guitarra acústica, o fole, um metal plangente que lembra alaúde, o cheiro das lanternas a óleo, o cheiro dos pneus queimando no asfalto. Aqui um som de vidros, um menino na escuridão, tocando as garrafas do seu tio alquimista. Aqui atabaques, batuques, harmônico de cristais por entre serrotes. Incelências e litanias no velório de um velho dragão que voltou da guerra. Montaria motorizada redescobrindo artefatos pós-históricos, encostando as pontas dos mil fios desencapados da cultura brasileira.
Ficha Técnica
Produzido por Makely Ka * Co-produzido por Lucas Miranda (oscilloid.net) e Patrícia Rocha (m-ut.com) * Arte Gráfica: 1porextenso.com * Xilogravura: Iuri Chachan * Foto: Sonda Curiosity (Nasa) * Produção Executiva: Renata Andrade Chamilet * Gravado no Estúdio Engenho (BH) por André Cabelo, Gustavo Oliveira e Dênis Martins, entre julho de 2011 e outubro de 2013 * Vozes gravadas no Estúdio Serrasônica por Pedro Durães, exceto as vozes de “Itinerário Tatarana” gravadas no Estúdio Gaia (SP) por Alessa Camarinha * Os arranjos de “Epifania” e “Itinerário Tatarana” foram gravados no Estúdio O Grivo (BH). O baixo de “Íbero America” foi gravado no Estúdio Nave (Juiz de Fora) * A Lira Cretense e o Bouzouki foram gravados no Estúdio Vasmaris (Heraklion / Ilha de Creta, Grécia) * As guitarras de “Carrasco” e “Cavalo Motor” foram gravadas mo estúdio Monaural (RJ) por Léo Moreira * As paisagens sonoras foram gravadas na região do Grande Sertão, no Noroeste de Minas Gerais * Mixado por André Cabelo e Makely Ka no estúdio Engenho (BH) * Masterizado por Carlos Freitas no Estúdio Classic Master (SP)
O que já disseram:
Makely Ka e o tamanho do Sertão
O Sertão é do tamanho do mundo. A frase de Guimarães Rosa em sua obra prima, Grande Sertão: Veredas, é uma das mais potentes definições que posso imaginar, prenhe de tantos significados quanto o mundo pode ter. Este texto se destina a tratar de Cavalo Motor, o álbum de Makely Ka, e logo se fará claro porque o abro com este texto. Mas antes, permito-me contar duas pequenas histórias, uma de um gênio à altura de Rosa, a outra mais pessoal.
– No pequeno conto Os dois reis e os dois labirintos, Jorge Luiz Borges conta a história do rei da Babilônia, que ao receber a visita de um rei árabe, para mostrar sua superioridade mostra-lhe o labirinto que mandou construir soltando-o lá dentro, o que o faz passar a tarde perdido entre paredes, portas e escadas. Humilhado, o rei árabe se despede, mas retorna mais adiante com suas tropas e conquista a Babilônia. Avisa então que retribuirá a gentileza, mostrando por sua vez o seu labirinto. Leva o rei vencido amarrado ao centro do deserto, e diz-lhe: Em Babilônia mostraste-me seu labirinto de bronze, com portas, muros e escadas. Pois agora mostro-lhe o meu, que não tem necessidade de nenhuma destas coisas. E abandona-o lá, onde morre de fome e sede.
Uma vez visitei Canudos, a cidade emblemática ao norte da Bahia, pleno sertão. Deliberei conhecer as ruínas da velha cidade, e lá fui de carro com ar-condicionado, caminho de terra adentro. Acontece que tomei uma bifurcação errada, e então me meti numa estrada que não chegava a lugar algum, mas tambem não tinha fim. Depois de cerca de 40 minutos avançando rumo ao nada, eu ia sendo engolido por algo imensamente maior que eu, que se mostrava mais desafiador a cada curva que dava em mais caminho indiferente. Finalmente, humilhado, me convenci que não podia ser por ali, dei meia volta a custo na estrada estreita com cerrado alto dos dois lados e retornei.
Makely Ka afirma em uma entrevista que Cavalo Motor não é um álbum conceitual sobre Grande Sertão: Veredas. Não é mesmo. É um álbum conceitual sobre o Grande Sertão e suas infinitas Veredas. E o Sertão toma nele o tamanho que for necessário.
Makely, entre julho e setembro de 2012, partiu na expedição audaciosa e solitária de repetir, montado em sua bicicleta, a trajetória de Riobaldo Tatarana, o protagonista do livro de Guimarães Rosa, pelos vilarejos e aldeias do interior de Minas Gerais na divisa com Bahia e Goiás. O registro fotográfico e videográfico está em seu site. O ponto de partida de seu álbum está aí, mas o final se estende além, em diversos sentidos.
A primeira canção, Carrasco (o título refere-se a um dos biomas entre o cerrado e a caatinga, como informa a letra), se inicia e permanece até o fim com o som ambiente gravado por Makely em viagem, enquanto um didgeridoo, instrumento australiano, emula o berrante. É a primeira pista de até aonde a viagem pode ir. Makely não canta à capela, e sim sobre sons sertanejos gravados, que são literalmente o arranjo da faixa. Arto Lindsay, convidado por ele a fazer intervenções com sua guitarra distorcida avassaladora sobre esta canção e a seguinte, a canção-título do álbum, tem participação surpreendentemente tímida. Arto preferiu comentários discretos, como que não se atrevendo a rasgar este universo, preferindo contracenar e não competir com a gravação das cigarras na noite do sertão.
A decisão de Arto pela complementação ao invés do contraste entre entre supostos opostos dá o tom do álbum. Além dele, um time completo de músicos – o conhecido Uakti, oscilloID (codinome eletrônico de Lucas Miranda), M-UT (idem para Patrícia Rocha) e O Grivo (projeto do duo Nelson Soares e Marcos Moreira Marcos envolvendo música, instalações e performances) – fazem suas interferências sonoras, contracenam com este fundo do sertão, seja acrescentando-lhe ou substituindo-o em outras canções, em camadas de paisagens sonoras, no dizer do próprio Makely. O ancestral e o contemporâneo convivem como a bicicleta de Makely, com um gerador de eletricidade acionado pelo seu pedalar, carrega as baterias do laptop e do celular/modem que o mantém em contato com o Mundo, de dentro do Sertão, ou que levam o Sertão a todo o Mundo.
Mas para esta convivência estética entre mundos díspares acontecer, é necessário um lugar também estético que as acolha. E este lugar é criado em duas abcissas, dois componentes que dão credibilidade a estes encontros permitindo que esta viagem Sertão adentro e afora aconteça simultaneamente: as composições de Makely, e a sua voz.
Tem que caber pra becapar / Tem que caber pra becapar / Tem que caber pra becapar no HD – o baque de maracatu, no verso tão aliterado que poderia dispensar a percussão, faz-se ouvir no meio do coco rasgado de Fio Desencapado, fazendo a fusão entre arcaico e experimental – neste caso com a divisão clara entre verso futurista e música tradicional (mas numa letra de resto bastante coloquial e até com referência urbana, confessadamente inspirada na parceria Guinga / Aldir Blanc e até com a típica coda usada por eles também em Canibaile e Baião de Lacan). Mas a fronteira fica menos clara em outros lugares, como em Ibero América, composta com referências à música árabe na península, mas que os gregos consideraram uma espécie de pagode grego…
As canções, pelo uso da modalidade, típica das tradições brasileiras, mas também da música árabe ou da música contemporânea, entre tantas outras tradições, que lhe permite traçar pontes entre elas. Pela multiplicidade de referências que podem mesmo fazer o ouvinte se perder.
Mas eu sou tão cafuso
é tanta melanina
tudo tão confuso
é muita cajibrina
entrando em parafuso
é tudo made in China
eu vou trocando o fuso
e vai mudando a rima
E lá vamos nós pelo labirinto do deserto, sem paredes para nos escorar. A poética de Makely se sustenta então pela sintaxe muito própria, com rimas a meio caminho entre o repente e o rap e uma profusão de referências díspares que, sobrepostas, dão novos sentidos umas às outras. Ele próprio avisa, d’aprés Tom Zé: eu não vim explicar / sou um complicador. Letras que à primeira audição ganham destaque diante das melodias aparentemente simples pela proximidade da tradição popular, parecendo soluções fáceis ao ouvido desavisado, mas, a exemplo dos temas de Alceu Valença, ao contrário muito bem trabalhadas, inseridas no jogo de referências ao tomar as primeiras notas de Assum Preto, de Luiz Gonzaga, para logo torná-lo o Assum Cinza, ou a ciranda de Lia de Itamaracá para sua Roda da Fortuna; ou o coro em ôôôô das duas primeiras faixas, que retorna na antepenútima canção, Idade da Terra, como um eco de outras eras que reforça o conteúdo da letra na sequência do álbum.
E o outro ponto de encontro entre os diversos mundos, o próprio Makely, ou melhor, sua voz. Makely está longe de ser um grande cantor. Na verdade, não pode sem mesmo ser considerado um bom cantor, tecnicamente falando. Mas sua voz é o fio de barba que vale por um documento. Nela está implícita sua história pessoal, sua família sertaneja vinda para a cidade, o êxodo de mais de um século em direção às capitais e parcialmente revertido nos últimos anos. Se em Autófago, seu álbum anterior, a voz de Makely soava até certo ponto acessória, aqui ela é central, para o bem e para o mal. Seu grave muito expressivo e meio rascante, embora soe apropriadamente rústico para a crueza de seus versos, desta vez, diante de melodias mais delicadas e justamente pelos tons modais, pode dar ao ouvinte a sensação de alguma sutileza estar sendo desperdiçada. Ou, por outro lado esta mesma imprecisão por outras vezes sugere nuances talvez não pensadas na composição, assim como a imperfeição formal de cantadores, rezadeiras e mestres são também sugeridores de outras formalidades.
Este jogo de perde-ganha de uma voz não domesticada por vezes deixa questões em aberto – o que não é ruim. Mas fica a impressão de que um maior controle de seu material vocal, sem abrir mão de suas características, faria o material composicional render ainda mais do que já rende. Por duas vezes Makely recorre a vozes femininas, uma vez para terçar com ele o Itinerário Tatarana, e outra para repetir a faixa final, a curta Sertão – não por acaso, duas canções chaves no álbum. Mesmo assim, no fim das contas sua voz é a fiel desta balança, que traz em si o Sertão e o estende pelas canções, amarra as setas apontando para direções diversas e lhes dá unidade.
De certa forma, todo Cavalo Motor espelha o movimento de êxodo invertido que mencionei, tanto em termos de fenômeno populacional quanto em termos pessoais de Makely – a história de sua família e sua viagem, mas também estéticamente, depois de álbuns em que cantava primodialmente a metrópole (Autófago e A outra cidade, este em parceria com Pablo Casto e Kristoff Silva). Se Autófago era um álbum de e para a cidade, mas também sobre aquilo que persiste e permanece de sertão na cidade, Cavalo Motor faz o caminho inverso, mas como uma continuação do movimento anterior, levando para o sertão a cidade e suas programações eletrônicas e referências urbanas, mas esta labirinticamente trazendo dentro de si ainda o sertão).
Estruturalmente, três canções balizam o álbum: Carrasco, Itinerário Tatarana e Sertão. As três trazem o fundo gravado por Makely na noite interiorana; abertura e encerramento trazem, do título à letra, a descrição do ambiente – a primeira, de forma literal e quase objetiva; a última como impressão subjetiva e quase transcedental. E quase no centro exato do álbum, como um pau de barraca sustentando o teto, o mapa do caminho, numa canção cuja letra é quase exclusivamente a lista das cidades percorridas por Riobaldo / Makely. O caminho objetivo, de bicicleta ou avião, se torna subjetivo e dá a senha para a transubstanciação do sertão. O mapa se alarga desmesuradamente para incluir não apenas a cidade grande que o visita, mas também a Nova Iorque do Baião para Gershwin, parceria com um músico de rua norteamericano; a já citada Íbero América; a Grécia que inspirou Idade da Terra, e as citações espalhadas pelas letras – bairros do Rio de Janeiro, México, Faixa de Gaza. Tudo é Sertão, assim como o ruído branco imemorial do sertão ao fundo pode ser o da eletrônica. Ou o do Big Bang. Ou os últimos versos do álbum, de Sertão:
Nada disso e além
Assim como duas histórias para abrir, duas para fechar, ambas do próprio Makely.
Este ano, 2014, durante a Copa do Mundo no Brasil, ele tornou e embarcar com sua bicicleta em uma nova expedição, e chegou a lugares do Brasil onde a Copa era um eco distante. Mas o trajeto foi interrompido por uma boa razão. Em suas palavras, contadas no Facebook:
“Eu planejei pedalar do sul do Piauí, próximo da nascente até a foz do Parnaíba. Mas cheguei aqui em Aroazes, terra do meu avô, depois de quase mil quilômetros percorridos, e resolvi que o resto do tempo que tenho de viagem vou passar com o velho Zé Honório, com quem convivo tão pouco. Meu avô nasceu em 1920 e tem uma memória prodigiosa. Aos 94 anos se lembra ainda de fatos ocorridos no início da década de 20. Ele foi vaqueiro, caçador, coletor de impostos, prefeito e continua sendo um ótimo contador de histórias. Vou ficar aqui na varanda, quieto, só ouvindo.”
Os últimos versos do álbum na verdade não são os que encerram a letra de Sertão, e sim os da rezadeira Dona Belizária, gravados in loco enquanto ela os pronunciava para benzer o pé inchado do cinegrafista que filmou um trecho da viagem. Vale a pena conhecê-los inteiros e seu trajeto de expurgo do mal de dentro para fora com pontos em comum com a medicina oriental, embora a incompletude deles no fade out seja igualmente significativa das profundezas inexploradas destes saberes:
Enzipa enzipela
Sai do tutano vai pro osso
Sai do osso vai pra carne
Sai da carne vai pro nervo
Sai do nervo vai pro sangue
Sai do sangue vai pro couro
Sai do couro vai pra pele
Sai da pele vai pra zona do mal
Com o poder de Deus
Enzipa, nem maldita, nem enzipela vale nada
O que vale é o poder de Deus
Que veio ao mundo pra nos ajudar
Te livra de todo o mal que tiver
Da cabeça aos pés
O avô e a benzedeira contam suas histórias, e sempre há uma que não conhecemos. Neles os caminhos se abrem e se fecham. Indo, vindo, de onde para onde? Sem direção de casa. Sertão é dentro da gente. O sertão não tem janelas, nem portas. O sertão é sem lugar. Tudo é labirinto, mas não estamos perdidos. Cidadãos do mundo, estamos sempre voltando para casa. O mundo é do tamanho do Sertão.
Por Túlio Villaça em 03/11/2014
Makely Ka e o tamanho do Sertão
Uma Obra de Arte e Sustentabilidade
Um disco gravado na estrada, uma obra de arte e sustentabilidade, conectada com uma aventura pela região do romance “Grande sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. Patrocinado pela Natura Musical, “Cavalo motor”, do compositor e violonista Makely Ka, integra um projeto que inclui exposição, filme, documentário, livro , palestra, site interativo com mapas, relatos, fotos, sons, tudo registrado no percurso de 1.680 kms por tabuleiros e chapadões do interior mineiro. Nascido no Piauí, há 38 anos, e criado em Barão de Cocais, Minas, Makely gravou os discos “A outra cidade”, em 2003, com os parceiros Kristoff Silva e Pablo Castro, “Danaide”, com a cantora Maísa Moura, em 2006, e o solo “Autófago”, de 2008. Maísa é uma das convidadas ao lado dos produtores de música eletrônica Oscilloid e M-Ut, do experimental O Grivo, da banda de pífanos Cataventoré, e mais Décio Ramos, do grupo UAKTI, a cantora paulista Suzana Salles, os músicos gregos Kostas Skoulas e Dimitris Vasmaris, o cantor Sérgio Pererê e o guitarrista e produtor “pernambucamericano” Arto Lindsay. No disco, que tem faixas como “Baião para Gershwin”, “Fio desencapado”, “Código aberto”, “Itinerário Tatarana”, “Ibero América”, “Baião branco” e “Assum cinza”, Makely exercita sua lira afiada e inquieta. Como diz o compositor e escritor Bráulio Tavares no encarte: “Aqui se ouve um sertão de metal pesado raspando uns nos outros, lancinantes. Aqui tem trava língua, stacato, trocadilho. Cada consoante como uma conta, num enorme ganzá”. Em tempo, o “Cavalo motor” (“eu não vim explicar/ sou um complicador”) da faixa título, refere-se a bicicleta utilizada na viagem, fabricada pelo compositor, formado em eletrônica, com um sistema que acumula numa bateria a energia das pedaladas e permite a utilização de computador, máquina fotográfica, celular e gravador.
Por Tárik de Souza
Canal Brasil [http://colunas.canalbrasil.globo.com/platb/tarik]
Exercício inevitável de brasilidade
Não é todo dia que um homem pega sua bicicleta e se lança no sertão seguindo a trilha de Riobaldo, jagunço-filósofo-narrador do memorável Grande Sertão: Veredas, fruto-rei do inventivo mago João Guimarães Rosa. Como perguntaria Drummond, “João era tudo? / tudo escondido, florindo / como flor é flor, mesmo não semeada?” (de Um chamado João, de 1967, publicado três dias após a morte de Guimarães). Pois o que é a aventura desse homem em sua bicicleta, hoje, senão a busca da poesia a seco, da flor escondida, do “sertão místico disparando no exílio da linguagem comum”. Afinal, “o perigo também é prazeroso, não se pode viver é na paúra”. Não é todo dia que esse mesmo homem aplica seu engenho para desenvolver um sistema que permite que suas pedaladas abasteçam de energia o farol da bicicleta e apetrechos como máquina fotográfica, computador e gravador. Adventos de um novo dialogar do eu consigo mesmo. Sertão e dessertão. Não é todo dia que, existindo, esse aventureiro registra em áudio, vídeo e foto o trajeto feito, imortalizando e suspendendo na memória suas paisagens e personagens.
E mais. Não é todo dia que a causa dessa viagem é procriar a arte. Não é todo dia que tudo isso vira transmídia. Vira música. Vira um disco de 15 atos. Vira obra na mão de um compositor destinado a ser notável. Não é todo dia que surge um Makely Ka, e que ele e bicicleta se misturam, transformando quase 2.000km de pedaladas sertanejas em estruturas melódicas transbordantes de profundidade. Não é todo dia que nasce um Guimarães Rosa, não é todo que se narra um Grande Sertão, não é todo dia que se corta um imenso sertão, não é todo dia que se faz música vendo esse sertão pela alma, na fundura da experiência, no avesso do avesso. Não é todo dia que o sertão inspira e vira nota, poesia, melodia. Essa química definitivamente não é de todo dia. É um lampejo. Nonada. Ouvir Cavalo Motor, segundo disco solo ou experimento antropológico (como queiram) do Valenciano Makely Ka, é um exercício inevitável de brasilidade.
Por Victor Cremasco
Jardim da MPB [http://www.jardimdampb.com.br/makely-ka/]
Grandes Inspirações
Falar de ‘Cavalo motor’, segundo disco solo do cantor e compositor Makely Ka, não é tão simples. Ícone da geração Reciclo Geral, que sacudiu a cena autoral mineira no início dos anos 2000, o artista concebeu um projeto complexo para suceder seu álbum de estreia, ‘Autófago’, lançado em 2008. De bicicleta, percorreu solitário os caminhos do jagunço Riobaldo, personagem do livro ‘Grande sertão: veredas’, de Guimarães Rosa. Os quase 1,7 mil quilômetros pelo noroeste mineiro, com suas paisagens, personagens e fatos, lhe serviram de inspiração.
Nascido no Piauí, criado em Minas Gerais e formado em eletrônica indústrial, o artista construiu um sistema para transformar a energia mecânica de suas pedaladas em energia elétrica. Assim, partiu para a viagem, realizada entre julho e setembro de 2012, garantindo bateria suficiente para o farol da bicicleta, máquina fotográfica, computador, celular e um gravador. A partir dos registros que fez em áudio, vídeo e foto, criou projeto que engloba exposição fotográfica, documentário, livro, palestra, instalação, site interativo e, claro, as 15 faixas reunidas no disco.
À exceção de uma música (‘Baião para Gershwin’, com Benji Kaplan), todas as músicas são assinadas apenas por ele. O habitual talento para a seleção das palavras surge já na faixa de abertura, ‘Carrasco’, referência a vegetação dos chapadões que guarda semelhanças com o cerrado e a caatinga. A viagem forneceu matéria-prima para letras como ‘Itinerário Tatarana’, mas vários bons momentos do álbum, como ‘Fio desencapado’ e ‘Baião branco’, não estão relacionados de forma tão óbvia a essa temática central.
Por Eduardo Tristão Girão
Jornal Estado de Minas
Cavalo Motor, um álbum-cinema
A audição do novo disco do Makely desencadeou e trouxe até mim fragmentos de cenas de certos filmes, provocando uma bricolagem cinematográfica em que as paisagens se alternavam em cortes descontínuos. Estiveram presentes nesse devaneio,Deus e o Diabo na Terra do Sol, Amarelo Manga, O Céu de Suely, Linha de Passe, Viajo por que preciso, volto por que te amo, Febre do Rato, Girimunho, e, no meio desse redemunho, Makely, na poeira vermelha do sertão, “o sol rachando a terra/a pele erisipela” ou sob o ar condicionado de uma sala de embarque em qualquer aeroporto do mundo.
Das viagens que fez, talvez o compositor venha munindo-se há algum tempo de informações imagéticas que ele agora nos oferece recriadas em forma de canção. Mas, como quem vai a campo sem bagagem não poderia perceber tantas nuances de vida como as que nutrem esse Cavalo Motor, Makely foi viajar país afora e fora do país, apenas depois de ter correndo nas próprias veias o alimento colhido da antropofagia de Oswald, da poesia concreta, dos tropicalistas, da trova nordestina, das mitologias diversas, da prosa poética de Guimarães Rosa, das cantorias de Elomar a Itamar, da sensibilidade pop-erudita do Leminski, das sacadas sensibilíssimas do Chacal, do pensamento autônomo do Risério, das harmonias do Guinga, da musicalidade híbrida de Chico Science, e muitos etceteras. Enfim, Makely partiu carregado de bagagem para conhecer e se reconhecer no mundo. E, paraencostar as pontas dos mil fios desencapados da cultura brasileira (como escreveu o Bráulio Tavares no texto de apresentação do disco) resultando no novo álbum, nada foi mais decisivo que a viagem que o compositor fez por aqui mesmo, montado numa bicicleta velha, seguindo os rastros de Riobaldo pelo Grande Sertão, entre Minas e Bahia. Das viagens, a mais próxima e a mais profunda.
A experiência vivida no sertão trouxe, além de paisagens sonoras indispensáveis à cor do som do novo disco, a dose de lirismo que sobrepõe à agressividade predominante das canções. Aridez yang banhando-se nas águas yin das veredas, no meio do buritizal: possível ideograma desse álbum-cinema. Lírica e agressiva, a palavrasom do Cavalo Motor é a de quem, em busca do sertão profundo, se depara com plantações de eucalipto e carvoarias, fast-food e som mecânico, construção de barragens e óleo diesel, e vislumbra mudar de rumo (e de rima), sempre quando encontra quem lhe ofereça um doce de buriti enrolado na palha, ou uma vereda revoada por araras Canindé.
Road movie de um eu-sertão-país-mundo complexo, matuto e cosmopolita, o Cavalo Motor é antena transmissora de imagens condensadoras em que questões atuais urgentes (íntimas, ambientais, políticas) enredam-se com temas míticos e personagens de outras eras, em carne, osso e espírito. Carece de ter coragem, sussurra/grita Diadorim nas entrelinhas da música do Makely, denunciando o modelo de felicidade da sociedade de consumo – tão dependente das tvs de plasma, dos automóveis e dos ansiolíticos, além de muitas quinquilharias mais, produzidas à revelia dos que optaram por outros caminhos que não o do malfadado progresso econômico. Aqui tem, sim, um viés marcadamente social e político, mas sempre amalgamado a posições subjetivas e culturais bem mais profusas, tudo amarrado em forma essencialmente artística, antropológica, integral.
Do som do grilo às guitarras distorcidas, nada foi feito gratuitamente ou para agradar a alguém. Makely abraça Gershwin e Luiz Gonzaga e inventa seu próprio som. Até o conjunto inusitado das participações especiais está ali a exprimir seu íntimo (seu múltiplo?). Filho de Ogum, o compositor não poderia abrir mão dos ingredientes eletrônicos, que ficaram a cargo de Lucas OSCILLOID e Patrícia M-UT; nascido em terra de vaqueiro e criado no interior de Minas, o sotaque mineiro e nordestino permeia ritmica e afetivamente todo o disco, e o Cataventoré veio colorir com seus pífanos esses afetos; Sérgio Pererê, com a cor abrangente dos seus vocais. Décio Ramos, do Uakti, trouxe seus experimentos definitivos. O Grivo, a reverência pelo som e pelo silêncio.(Não há sertão sem um e outro). O duo caipira com Suzana Salles, uma das principais expoentes da vanguarda paulista, é intensamente simbólico, assim como a presença do gringo-brasileiro Arto Lindsay. E os encontros fortuitos com o compositor novaiorquino (?) Benji Kaplan e com os músicos gregos Dimitris Vasmaris e Kostas Scoulas vieram dizer sobre as flores que o acaso nos dá e engrossar ainda mais o caldo da nossa música mestiça.
Tão cafuso, tão confuso, levando Deus e o Cujo dentro de si – toma tento/tem cuidado/que o perigo mora ao lado/ dentro/ eu – que o Cavalo Motor siga, como um trator na contramão da falácia desenvolvimentista, soprando a concha de Vishnu, com a benzedura de Dona Belisária e a benção de Olorum.
Por Maísa Moura
Makely Ka Cavalo Motor
homens criam animais. e sabem seu ronco que repercute as entranhas da terra que repercutem o big bang primordial. é lá que meu amigo genial, makely ka, vai buscar suas canções. é impressionante seu pendor para o que atravessa as camadas tectônicas desse planeta. escutar cavalo-motor é uma experiência rara. o surdo que acorda a tempestade é o mesmo que percorre o disco compacto. aboio de vaqueiro, onde a fala, o canto, as ondas sonoras do centro do cu do mundo se fundem. o cara tem a precisão da flecha quando lançada pelo sopro da alma. sua viagem longa, torta, cada vez mais funda, através do sertão de rosa, do sertão de graça, a pé de bicicleta em algum trem, gerou uma obra rara e prima chamada cavalo-motor. desconheço o suficiente as filigranas das escalas e acordes para evitar pisar em falso e explodir pelo caminho. mas leio ali o aboio, o surdo do maracatu, o jazz, experiências que quebram no ouvido. todo curtido em letra viva, solta, que rima xingu com schoenberg. ave parceiro makely. com você no volante, o mundo se desconcertaria. e a vida voltaria a vibrar.
Por Ricardo Chacal em 21 de dezembro de 2014
Cavalo Motor
Outro disco impressionante que vim a conhecer apenas agora: “Cavalo Motor”, de Makely Ka. Lâmina cabralina, opulência rosiana, messianismo glauberiano. Makely brutal e original. O Nordeste este ano não me foi avaro: José Inácio Vieira de Melo e Makely Ka.
Por Tiago Amud 30 de dezembro 2014
A POESIA – MOTORA – ÁCIDA DE MAKELY KA
Não sou crítico de música nem tão pouco jornalista, mas tive uma enorme necessidade de publicizar minhas impressões sobre esse disco.
Acabo de ouvir um dos discos mais sensacionais da música brasileira nos últimos tempos. O “Cavalo Motor” de Makely Ka , não apenas me impressionou pela poética, mas pela simbiose entre canção, arranjos, paisagens sonoras e ambiências.
A acidez presente na obra de Makely, nesse disco se encontra com o sertão mineiro, não poderia dar em outra coisa!!
A faixa “Cavalo Motor” pra mim traduz um pouco desse poeta, “eu não vim explicar sou um complicador/ Eu não vou recuar sou como um trator”.
Assim como Guimarães Rosa, a palavra-objeto do Makely nos transporta pra outro Sertão Mineiro, um sertão mais ácido-árido-poético.
A música “Fio Desencapado” eu conheci ainda só com violão e voz, mas me deixou abismado no jogo de palavras. Quando a ouvi a primeira vez é como se ela estivesse já pronta há muito tempo pairando pelas nossas cabeças e Makely passou para o papel, ou melhor pro disco. Não foi a toa que foi a primeira música que escolhi pra incluir no meu primeiro disco.
Mas duas músicas me tiraram o fôlego: “Assum Cinza” e “Itinerário Tatara” essa última com a participação da Suzana Salles . “Assum Cinza” pra mim fechou a questão, fiquei chocado com a profundidade da música, é como se me visse dentro da música, sinestesia pura. É nela pra mim que o poeta consegue, como cantor, nos arrebatar. É de uma melancolia que só ouvindo pra se ter uma noção.
Já a “Itinerário Tatara” com a Suzana Salles, que é cantada a duas vozes o tempo todo, é onde a gente consegue caminhar no lombo do “Cavalo Motor”, não apenas pela letra mas pela abertura das vozes que nos remetem às vozes do interior mineiro, é como se eu estivesse em Matozinhos, minha cidade, ouvindo minha mãe cantar quando eu era criança.
Mas pra mim quem quiser conhecer a genialidade de Makely ouçam Íbero América com a participação mais que necessária deSérgio Pererê , é a mistura mais cosmopolita que já vi gravado.
Na verdade é a primeira vez que ouço um disco e consigo ver o artista em pessoa. “Cavalo Motor” é o próprio Makely Ka, foi a exata sensação que tive!!
Um conselho: Ouça o “Cavalo Motor” de Makely Ka é só baixar no link abaixo:
Por Rodrigo Jerônimo em 11 de maio 2014
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