Bactérias num meio é cultura
Cultura para quê?
Sei que do ponto de vista antropológico é incorreto afirmar isso, mas ultimamente estou com a impressão de que a cultura não faz parte da vida das pessoas. É no máximo acessório, hobby, suplemento. Ou para usar uma expressão muito comum no jargão jornalístico cultural: está à margem, é marginal. Pelo menos é o que parece a julgar pela ausência de discussão ou debate e pela fragilidade da maioria das propostas – quando há – nos programas de governo de quase todos os candidatos que disputaram ou ainda disputam estas eleições. Presenciei nas últimas semanas discussões acalouradas sobre política econômica, sistema de saúde, educação, saneamento básico, meio ambiente, previdência social, reforma agrária, diplomacia internacional, e tudo aquilo que supostamente interessa de algum modo pessoas minimamente empenhadas na construção de um país. Nenhum desses interlocutores pareceu-me se interessar por discutir políticas públicas para a cultura. Tenho algumas hipóteses para isso: uma delas é a incorporação do mito da geração espontânea pelo imaginário coletivo. De acordo com esta visão, cultura é alguma coisa que brota espontaneamente do seio do povo. O que tem de verdade nesta afirmação – de forma simplista exemplificada e corroborada pela riqueza e diversidade da produção cultural brasileira, que raríssimas vezes contou com qualquer tipo de apoio público ou institucional – tem também de nefasto, pois exclui toda e qualquer possibilidade de investimento e inviabiliza a profissionalização e o estabelecimento de projetos e carreiras que não se adequam à lógica do mercado. Ao mito da geração espontânea soma-se a idéia de gênio, aquele artista que vence todas as adversidades e impõe sua arte pela força e graça de um dom divino. Na prática esta é mais uma justificativa para negar não só ao artista, seja ele genial ou não, mas a toda a população o acesso aos bens de cultura, que contribuiria para sua formação e daria possibilidades para o desenvolvimento de carreira.
Retomo aqui outra hipótese para o desinteresse: a de que cultura é considerado algo realmente supérfluo para a maioria das pessoas. Essa é uma visão que surgiu a partir da revolução industrial e se desenvolveu no lastro do capitalismo. O automatismo das linhas de produção definitivamente não combinava sequer com as mais sisudas manifestações culturais. Mas o contrapeso da indústria é usar a cultura como vávula de escape das tensões geradas nas engrenagens das linhas de produção, ou seja, transformar a cultura em entretenimento. Essa é a fórmula encontrada para extrair lucro do supérfluo. Daí o termo contraditório em si mesmo mas por isso mesmo tão revelador: Indústria Cultural.
E se, de acordo com o senso comum, a cultura não faz mais parte da vida das pessoas – se é que isto seja possível – ou melhor, faz como anexo, como adendo, o que fica patente por exemplo na nossa formação escolar – no currículo básico as disciplinas de humanas possuem uma carga horária e um peso significativamente inferiores às ciências exatas e biológicas – não faz sentido sequer o Ministério da Cultura (http://www.cultura.gov.br/), órgão responsável por promover, fomentar e difundir a cultura brasileira, ter direito a mais do que os míseros 0,4% do orçamento da União. Aliás, pode-se perguntar até para quê um Ministério da Cultura? Política pública para a cultura, como afirmam em coro conservadores e reacionários, é uma desculpa para artistas sem nenhum talento mamarem nas tetas do governo. Nada de bolsas, incentivo à pesquisa de novas linguagens, fomento à circulação e à difusão, facilitação do acesso aos bens culturais, redução de impostos sobre produtos, etc. Pensando bem, porque eles quereriam ampliar a formação cultural e facilitar o acesso aos bens culturais para a população de uma forma geral? Cidadãos críticos bastam eles.
Economia de Mercado
Do ponto de vista governamental, talvez o erro histórico tenha sido o de não ter considerado a cultura uma questão estratégica. A música por exemplo, nosso principal produto de exportação, nunca recebeu apoio devido do poder público, ficando atrelada aos interesses das gravadoras multinacionais que ainda hoje detém o controle sobre a maior parte do que é vendido para fora do país. Já o cinema americano, que muitas vezes, digamos assim, ‘substitui’ o exército na função colonizadora do império, é considerado questão estratégica de estado e conta com subsídios do governo.
Mas se nenhum desses argumentos é suficiente para sensibilizar nossos políticos e menos ainda a opinião pública, voltemos ao mercado. Retomando a tese de que cultura não seja realmente importante na vida das pessoas, que não faça parte da formação e não tenha a menor importância para o povo brasileiro de uma forma geral, ainda assim ela representa por baixo uns 10% do PIB. Basta pensar o que se consome só de música brasileira não só aqui, mas no mundo inteiro diariamente. (Segundo estimativa do Banco Mundial, a economia da cultura é o setor que mais cresce e representa hoje 7% do PIB mundial. Basta dizer que só a obra dos Beatles gera um retorno financeiro para o Reino Unido comparável ao da indústria automobilística. Aqui, o pesquisador Luís Carlos Prestes Filho, em seu livro “Cadeia Produtiva da Economia da Música”, afirma que somente a música é responsável por pelo menos 4% do PIB de todo o estado do Rio de Janeiro e). O MinC atualmente, briga pelo direito a 2% do Orçamento Geral da União.
Os Programas
Mas vamos ao que interessa aqui: os programas de governo para a cultura. É patente que esses programas buscam sobretudo uma repercussão imediata no eleitorado, passando por cima de temas que despertam menos interesse, mas que não estão necessariamente fora da pauta efetiva do partido para um futuro governo. Por outro lado, essa falta de repercussão do tema junto ao eleitorado nos leva a supor que, dadas as possibilidades remotas de qualquer governo cumprir todas as suas propostas, a cultura, jogada já na campanha para o fim da fila, certamente não terá destaque nenhum numa efetiva gestão. É o cultura-zero. Por isso vamos abordar primeiro os programas de cultura do PSOL e do PDT, que ficaram na rabeira da disputa presidencial. O partido de Heloísa Helena sequer apresenta uma proposta para a área, limitando-se a falar da necessidade do acesso à cultura no tópico relativo à democratização dos meios de comunicação e lembrar o direito constitucional a cultura e ao lazer no tópico sobre a juventude. Eu acho muito pouco para quem diz estar a serviço da revolução. Ora, como queria Maiakovski, toda revolução é, sobretudo, uma revolução cultural. Quanto ao programa do então candidato Cristovam Buarque, sua proposta para a cultura resume-se a sete ações aparentemente simples de “como fazer para disseminar a cultura no seio do povo”. As ações primam pela falta de critério e fundamentação, parecem frases tiradas de um questionário feito com professores de primário sobre o que deveria ser feito para a área cultural do país. São sete frases curtas que começam com verbos no infinitivo como “implantar”, “promover” e “incentivar”, sem nenhum plano ou estratégia de ação. Segundo depoimento publicado pelo site Cultura e Mercado (http://www.culturaemercado.com.br/) o cineasta Silvio Tendler, que colaborou com a formulação do documento para a área, “Cristovam acredita mais nas coisas que emanam do povo do que na Cultura de Estado”. Curioso, para não dizer contraditório, é que um candidato ‘obcecado’ pela questão da educação dê tão pouco espaço para a cultura em seu programa. Penso que uma educação sem cultura – se é que isso seja possível – seja algo tão precário quanto a falta dela.
O programa do PSDB por sua vez é uma espécie de resumo escolar mal-feito do programa do PT. Segundo o programa dos tucanos, eles pretendem ‘aperfeiçoar’ pontos como a política tributária para a produção, distribuição e comercialização de bens culturais, ‘redefinir’ as Conferências Nacionais de Cultura “ampliando a participação de todas as áreas envolvidas na questão cultural” e ‘redimensionar’ os Pontos de Cultura “formulando critérios mais claros e transparentes para a seleção e localização dos pontos.” Ora, para quem acompanhou a gestão do Ministro Gilberto Gil nestes últimos quatro anos, e tem pelo menos uma vaga lembrança das gestões anteriores, sabe que quando o PSDB fala em ampliação de participação, transparência na seleção e aperfeiçoamento de política tributária, para ficar somente em alguns pontos nevrálgicos, dá vontade de rir (ou de chorar). Ou seja, mal comparando, se o governo Lula copiou e deu continuidade ao projeto econômico do governo FHC, um possível governo Alckmin propõe um espécie de continuação indisfarçada do projeto de cultura do atual, só que com algumas diferenças básicas: muito mais incipiente, menos maduro e possivelmente com um Gabriel Challita no lugar de Gilberto Gil.
Nesse sentido, o programa “Cultura Viva” do PT, ainda que tenha muitos pontos a serem melhorados, é de longe o que apresenta as propostas mais consistentes e as estratégias de ação mais claras e objetivas. Afinal de contas foi nesta gestão que pela primeira vez na história do país a sociedade civil organizada discutiu suas propostas de políticas públicas para a cultura através das Câmaras Setoriais. A primeira vez que houve uma Conferência Nacional da Cultura, onde foram discutidas propostas com a perspectiva de criação de um Plano Nacional de Cultura. É a primeira vez também que esboçamos uma mobilização nacional da classe artística. Fundado em 1985, o Ministério da Cultura nunca esteve tão em evidência quanto nesses quatro anos em que Gilberto Gil esteve a frente da pasta. Com seu prestígio e sua linguagem poética, Gil iniciou em 2003 o que ele chama de “do-in antropológico” nos pontos vitais da nação. Era o início da massagem, ou seja, a potencialização dos Pontos de Cultura já existentes em todo o território nacional, equipando esses espaços e estabelecendo o contato entre eles, criando redes de troca de informação e experiências no Brasil profundo. Por outro lado houve também o enfrentamento com os poderes consolidados, como a questão do audiovisual por ocasião da criação da Ancinav e a escolha do padrão da TV Digital, que gerou a polêmica leitura do cordel pelo ministro Gil atacando a ‘parcialidade global’ do Ministro das Comunicações Hélio Costa. Além disso houve uma abertura importante para a discussão sobre as novas formas de licenciamento (Creative Commons) para uso das obras protegidas pelo direito de autor e uma maior articulação interna com outros Ministérios como o das Relações Exteriores e o da Educação. Sem dúvida falta ainda a prometida reformulação da Lei Rouanet, o aumento do orçamento e a efetiva implantação do Sistema Nacional de Cultura. Mas os avanços já são visíveis a olho nu e nenhum agente cultural de bom senso pode negar que durante sua gestão o Ministro Gilberto Gil fez mais pela cultura do país do que todos os outros que ocuparam o cargo juntos. É uma pena que toda essa discussão tenha passado despercebida pela quase totalidade da população, que parece não se interessar pelo tema. No máximo ouço alguma declaração, num misto de indignação e desabafo em tom niilista que o governo não faz nada pela cultura. Costumo perguntar de bate-pronta: o que você anda fazendo por ela? Conheço muitos artistas que no primeiro turno votaram nulo usando narizes de palhaço. Nessa altura do campeonato é muito mais fácil dizer que não votou em ninguém, que não é responsável por nada disso, que a culpa é dos outros que escolheram. Que você vai ficar com a consciência tranqüila. Para mim isso é somente uma declaração de isenção de responsabilidade futura. Então quer dizer que podemos deitar a cabeça no travesseiro e dormir tranqüilamente porque a responsabilidade não é nossa, minha, sua, de cada um? Então tudo de errado que está aí não é culpa nossa? Fala sério! Afinal era e continua sendo nosso dever cobrar, vigiar, intervir.
Contextualizando
Tenho acompanhado a polarização da discussão nas últimas semanas e tenho tentado não me manifestar – não só aqui, mas no supermercado, na feira, no banco, nos palcos, no táxi – de forma maniqueísta. Afinal de contas não estamos falando de times de futebol, não acho saudável que as convicções ideológicas assumam o caráter de fanatismo cego. Confesso que estou realmente preocupado com o aumento da truculência, com a escalada do preconceito, depredações de carros adesivados, agressões físicas cada vez freqüentes. Quer dizer, não acho que todo mundo que vota no candidato do PSDB seja manipulado pela grande mídia. Até porque a grande mídia está cada vez mais desacreditada, haja visto os grandes jornais e revistas contabilizando as recentes levas de cancelamento de assinaturas a cada reportagem tendenciosa que ignora a inteligência de seus leitores. Assim como os eleitores de Lula não são coniventes com a corrupção. Para mim a questão de fundo que sub-jaz a esses falsos argumentos são projetos diferentes para o país. Nesse momento é necessário deixar clara a diferença enorme entre ser parcial e ser maniqueísta. Essa mídia que normalmente assume o discurso da imparcialidade, mesmo estando umbilicalmente ligada ao interesse de grupos específicos e se auto-proclama dona da verdade verdadeira, isenta, objetiva e irrefutável seria mais honesta com o leitor, com o telespectador, se assumisse sua preferência, seus interesses, enfim, sua parcialidade. Teríamos pelo menos uma discussão mais transparente e ficaria a cargo desse leitor/telespectador decidir qual a ‘sua verdade’. O momento é de posicionamento político e nessa truculência de torcidas organizadas – inclusive por parte da imprensa ‘imparcial’ – talvez estejam os indícios mais claros, e tristes, da falta que faz uma formação cultural ampla, que nos permita entender e conviver com as diferenças políticas, ideológicas, estéticas, étnicas e religiosas.
*O título é um trecho da letra da música “Cultura e Civilização” de Gilberto Gil gravada em 1969.
http://www.gilbertogil.com.br/sec_discografia_player.php?id=53&numero=13&acao=play