Pelo que sei esta entrevista ainda não foi publicada em papel. Foi descoberta recentemente e circula pela rede. O poeta nasceu em Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais em 31 de outubro de 1902, portanto a exatos 104 anos atrás. Nos últimos anos entrei em algumas discussões defendendo a atualidade do velho sátiro. Não concordo com essa idéia do senso comum dos poetas de que era pouco rigoroso, muito sentimental, um diluidor, etc. É uma leitura superficial. Por trás da aparente facilidade de sua obra e docilidade de seu caráter, havia um criador rigoroso e um homem iconoclasta. Na juventude queimou bondes em Belo Horizonte protestando contra o aumento abusivo das passagens. Manteve uma amante fiel, a quem dedicou um livro ( publicado postumamente a seu pedido), o delicioso “Amor Natural”. Tem uma obra vastíssimas, com altos e baixos como qualquer grande autor, mas com altos altíssimos como “A Máquina do Mundo“, um dos mais deslumbrantes e geniais poemas escritos em língua portuguesa em todos os tempos. Minha sugestão é que se leia com calma, prestando atenção ao sotaque:
“Entrevista inédita com Carlos Drummond de Andrade? Cê ta brincando!” Felizmente, não estava. Era sério. Ouvi um pedaço da fita cassete, já bem velha, datada de 1984. A entrevista existia mesmo. Era o Drummond falando sobre velhice e morte. Mas, como ela foi feita? Quando? Onde? E por quê ela permaneceu inédita até agora? Renan Garcia Miranda, professor de história e escritor, conta como tudo aconteceu:
“Em 1984, quando éramos estudantes de Jornalismo, na PUC- SP, eu e o José Eduardo Duó (hoje roteirista e proprietário do restaurante Santa Gula na Vila Madalena em São Paulo) tivemos a idéia de fazer um programa de rádio sobre a velhice, como parte do curso. Acontece que uma de nossas colegas de classe, a Raquel (com quem perdemos contato e por isso vai aqui sem sobrenome), era aparentada de Drummond e se ofereceu para tentar uma entrevista. Bolamos as perguntas e as enviamos junto com uma fita cassete.
Pouco tempo depois, a fita chegou de volta com um bilhete de Drummond, que nosso intolerável desleixo deixou escapar em algum lugar do passado. No bilhete, Drummond falava de seu prazer em responder àquelas perguntas e contava como elas haviam sido respondidas: numa tarde de domingo, após o almoço, com a família reunida e a filha Maria Julieta lendo as questões. A imagem de como aquelas perguntas de aprendizes foram respondidas, sem a presença do jornalista e seu alvará de intrometido, nos agradava e continua nos agradando. Parecem caber numa paixão medida.
Posteriormente à entrevista, se a memória – quebrada lembrança – não estiver falhando, contamos com o auxílio de Juraci de Souza, hoje um azougue dos arquivos do Dedoc na editora Abril, para editá-la sob a forma de um programa de rádio e transmiti-la uma única vez, através do sistema de rádio interno da PUC. Nós nunca a transcrevemos para o papel, nunca a reproduzimos de novo.”
Quinze anos se passaram, e a fita foi “desenterrada” em uma dessas noites frias de julho, quando eu visitava o Renan. No meio de uma conversa jogada fora, ele mencionou a entrevista e a existência da gravação. Foi o suficiente para que eu passasse a infernizar a vida do pobre rapaz: exigi que revirasse o apartamento até encontrar a fita. Isso explica por quê ela permaneceu inédita até agora: faltava o tal do “jornalista com alvará de intrometido” para dar publicidade a um documento tão importante. Segue, na íntegra, a transcrição da entrevista.
A moça que leu as perguntas, Maria Julieta (“a pessoa que mais amei no mundo”, segundo disse o próprio poeta), morreu em 5 de agosto de 1987, após uma longa e dolorosa guerra contra o desenvolvimento do câncer no tecido ósseo. Seu pai se foi doze dias depois, em um domingo, às 20h45, por insuficiência respiratória provocada por infarto.
Entrevista com Carlos Drummond de Andrade no dia 30 de julho de 1984, na rua Conselheiro Lafaiete. Podemos começar?
Sim.
A primeira pergunta de Rachel é a seguinte, eu vou ler: “Gostaríamos que fizesse um perfil de você mesmo, da seguinte maneira, como era aos 22 anos, agora aos 82, e qual a transformação mais importante que sofreu nestes sessenta anos?”
Aos 22 anos eu era um rapaz muito inseguro com relação aos rumos a tomar, mas tinha uma namorada, e tinha preocupações literárias. Esses dois quadros parece que, de certa maneira, me ajudaram a enfrentar o problema da perplexidade que costuma ocorrer aos jovens, ou que pelo menos ocorria com certo rigor na minha geração. Bem, não era uma pessoa estudiosa, não levava a vida muito a sério, mas os mecanismos de preparação para a vida funcionavam inconscientemente em mim. Eu já publicava crônicas e pequenos poemas de verso livre nas revistas do Rio de Janeiro, e tinha sobretudo a fortuna de contar com um grupo de amigos todos eles mais estudiosos do que eu, levando a vida mais a sério do que eu porque trabalhavam, tinham os seus empregos fixos, e eram acadêmicos de direito, de medicina etc., e essas pessoas, como eu já tenho assinalado em outras entrevistas, foram muito camaradas para comigo, porque me recebiam de igual para igual, me tratavam como se eu fosse uma pessoa que realmente tivesse algum merecimento, então me estimulavam muito e de certa maneira ajudavam a enfrentar as barras da inquietação, da angústia que eram minhas companheiras bastante inseparáveis. Aos 82 anos, evidentemente, esse quadro é completamente outro. São sessenta anos de vida, e seria muito difícil que alguém não tivesse aprendido nada durante esse tempo, não tivesse recolhido nenhuma parcela de filosofia da vida, de comportamento, de compreensão das coisas. Então, eu acho que agora eu estou, evidentemente, muito mais equipado para viver, embora a margem de vida que sobra não seja a maior. Mas, de qualquer maneira, o caminho percorrido assinala isso, que eu fui de evolução em evolução, de passo em passo e passo a passo, ou talvez um pouco aos tropeções, mas fui vivendo ao longo da vida e aprendendo coisas. Eu acho que a diferença fundamental não existe entre o jovem inquieto e um velhinho já mais ou menos tranqüilo, o temperamento não mudou, apenas as experiências me ajudaram a ver mais claro as coisas que eu via então de uma maneira um pouco embaçada.
Vamos ver a segunda pergunta: “Como você sentiu a sua produção literária alterando-se com o passar dos anos? Se sentiu, de que maneira?”
Não, não senti, porque essa evolução se opera um pouco inconscientemente, você vai adquirindo novos meios de expressão, vai penetrando o sentido das coisas, ou tentando penetrar, e naturalmente pela leitura, pela reflexão, pelo hábito de escrever, vai se aprimorando o seu aparelho literário, a sua forma literária, os seus recursos verbais. Então, essa coisa só pode ser verificada depois comparando-se o que eu escrevia aos 22 anos e o que eu escrevo aos 82. Não creio que eu tenha feito um milagre de estar escrevendo agora coisas extraordinárias. Não, eu apenas acho que agora escrevo com mais consciência, e também é importante dizer, com mais dificuldade do que eu tinha aos 22 anos, porque passei a ter uma noção mais íntima da língua em que eu escrevo e das dificuldades que ela tem, e uma certa preocupação maior de usar a palavra própria, o termo adequado, e não um termo aproximado, ou um termo impressionista como eu então fazia, porque eu cuidava mais dos adjetivos, cuidava mais de uma forma de exprimir minhas emoções, do que propriamente de construir uma obra literária correta, e com conhecimento das particularidades da língua, e também com a preocupação de dizer alguma coisa que não fosse exclusivamente emocional, e sim uma coisa que envolvesse uma visão mais ou menos crítica da vida.
A pergunta número três: “Você sente que a sua memória vem falhando com o passar do tempo?”. E a segunda parte: “Até que ponto a memória é importante para o exercício das atividades poéticas?
Eu considero a memória um repositório fabuloso de elemento, uma espécie de enciclopédia que nós temos dentro de nós, e que vai sendo utilizada ao longo da vida. No meu caso, então, eu acho que a memória foi o que me valeu muito, porque eu não tenho estudos regulares, não tenho uma formação cultural perfeita, ou aproximadamente perfeita, mas tenho uma certa habilidade de procurar nas fontes mais recomendáveis as coisas que eu preciso saber para o efeito de escrever. Então, essa habilidade me permite consultar livros e documentos e textos e interpretá-los de uma maneira que só a memória poderia fornecer, porque se eu não tivesse essa memória, eu não saberia utilizar esses conhecimentos. Eu leio uma página de um escritor há vinte anos atrás, se eu me recordo dela, eu vou ao livro onde ela está, e posso reconstituir a emoção que eu senti, ou a impressão que eu tive lendo essa página. Agora, por outro lado, a memória é muito traiçoeira. E, no meu caso, parece que a quantidade de memória que me foi distribuída não é a das mais opulentas, pelo contrário, ela falha sempre, tenho uma triste memória visual. Sou capaz de não reconhecer seis meses depois uma pessoa que me causou profunda impressão pelo seu aspecto físico ou pela sua maneira pessoal de ser. Troco muito os nomes das pessoas, e esqueço muitas vezes ao falar a palavra que devia, nesse momento, por exemplo, a palavra que deveria pronunciar, ela não sai da minha cabeça, a não ser cinco minutos depois, quando já não adianta mais. Da mesma maneira a dificuldade de reagir a uma pergunta qualquer, responder uma indagação ou mesmo enfrentar uma situação difícil, no meu caso é muito precária, porque a solução ideal, o comportamento ideal esse só me ocorre quando já passou a situação. Mas eu acho que, mesmo não contando com a memória muito fiel, eu sei explorar com bastante habilidade essa pouca memória que eu tenho.
A pergunta seguinte é composta de três partes. “A crônica diária escrita nos jornais envelhece muito rapidamente por estar ligada às situações do cotidiano.” Pergunta: “Como fica a relação da poesia com o tempo? O que significa dizer que a poesia é atemporal?” Não estou vendo muito bem a relação.
Não tem muito nexo. A crônica realmente pela sua natureza é fugitiva, fugidia, ela passa depressa. Agora, não obstante nós devemos reconhecer que crônicas escritas há quase cem anos por um cidadão chamado Machado de Assis estão hoje vivas como naquele tempo. Os acontecimentos perderam a atualidade, mas a crônica não perdeu, porque elas traduzem uma visão tão sutil, tão maliciosa, tão viva da realidade, que o acontecimento fica valendo pela interpretação que Machado de Assis. Nesse sentido, a crônica não é assim tão passageira. Por outro lado, eu devo dizer também que já tenho seis ou sete livros constituídos de crônicas, e essas crônicas, não quero me gabar de coisa nenhuma, parece que elas não perderam a atualidade porque nem sempre elas comentam um fato do dia, ou quando comentam elas procuram dar uma extensão maior a esse fato, e generalizar, fazer uma reflexão qualquer sobre a vida, sobre os costumes, sobre a política, sobre os homens, à margem de um acontecimento transitório. E, sendo assim, a crônica tem uma certa chance de permanecer. Agora, por outro lado, eu devo reconhecer que cerca de 80 por cento, senão mais, das crônicas escritas por mim não podem perdurar porque em primeiro lugar eu não as achei adequadas a formarem um livro, e depois porque o jornal que é tão vivo no dia é uma sepultura no dia seguinte. Então, essas coisas escritas ao sabor do tempo perdem completamente não só a atualidade como o sabor, o sentido, a significação. Quando se fala de um determinado indivíduo que foi importante no Brasil, isso é tão comum uma pessoa ser importante vinte anos, durante dez anos, depois ficar completamente esquecida na política, na administração, no empresariado, na literatura, então a crônica que aborda um fato ou uma circunstância de vida dessa pessoa, perdeu completamente o sentido, porque essa própria pessoa perdeu o sentido. Então não é propriamente a crônica, é o acontecimento que ela reflete que perdeu a significação. Agora, a outra parte da pergunta me parece alheia, em todo caso, vamos a ela.
“Como fica a relação da poesia com o tempo, e o que significa dizer que a poesia é atemporal?”
A poesia com o tempo? A relação da poesia com o tempo, naturalmente, vem disso que todos nós vivemos no tempo e dentro do tempo, condicionados por ele. Então, a poesia que nós fazemos, mesmo não parecendo referir-se a esse tempo, ela traz a marca do tempo que nós vivemos, mesmo não sendo uma poesia estritamente temporal, não abordando temas que circulam hoje, que são hoje considerados importantes. Mas a poesia, a meu ver, se considerada na sua expressão mais pura, ela transcende o tempo, é exatamente uma das formas de transcendência do tempo, como a arte em geral, porque a ciência já não é assim. Um conhecimento científico da atualidade perdeu completamente o valor hoje, só tem valor histórico, mas um poema, como os poemas de Homero, os poemas de Virgílio, os poemas da Horácio na antiguidade clássica, hoje podem ser lidos, exigem naturalmente uma certa formação cultural, como se tivessem sido escritos hoje. AArte de Amar de Ovídio é atualíssima, os detalhes que ela enumera a respeito do modo de amar, das carícias que podem ser feitas, das reações masculinas e femininas, das conseqüências deste ou daquele impulso são coisas que acontecem na vida inteira. Então, a poesia refletindo isso, ela por sua vez é eterna. Também porque nós precisamos às vezes de um certo refúgio contra o tempo, queremos nos libertar, queremos ficar livres da pressão demasiada dos acontecimentos. Onde nós procuramos? Nós procuramos na música, nas artes plásticas, ou procuramos na poesia, são formas de transcender o imediato e o real e fugir a ele, nos elevando acima dele.
A pergunta número cinco é sobre o modernismo, diz o seguinte “Das concepções que originaram o modernismo quanto à liberdade formal, ideologia etc., o que você considera ultrapassado, e o que ainda é atual e por que?”
Quem deve responder melhor essa pergunta foi Mário de Andrade quando enumerou as conquistas do modernismo, que estão naquela famosa conferência dele pessimista sobre o modernismo. Ele pessoalmente achou que o modernismo era um movimento ultrapassado, e que ele tinha falhado porque não tinha dado um caráter mais permanente à sua obra. Mas as conquistas, digamos assim, técnicas do modernismo, culturais do modernismo, a atualização da inteligência brasileira, por assim dizer, embora pareça pretensioso, o fato de o modernismo ter trazido um novo estilo literário, um estilo que ficou até hoje, porque todas as liberdades que hoje se usa e se abusa na literatura, todas elas são fruto do modernismo. A desarticulação da sintaxe clássica sem desrespeito naturalmente ao fio condutor do pensamento, que nada tem a haver com as formas gramaticais rígidas, é uma conquista do modernismo. É um pensamento mais livre. O Brasil se libertou de uma poesia, de uma literatura copiada, imitada de cânones que ninguém mais nem cogitava. Fazia-se poesia no Brasil sobre a Grécia antiga, sobre a Idade Média, a poesia brasileira era um reflexo, era uma cópia apagada de poesias que tinham sido feitas em séculos anteriores. Isso tudo passou e hoje há uma liberdade de criação que só se deve ao modernismo. Eu tenho a impressão de que a herança dele é muito grande. Agora, como movimento evidentemente ele passou. Livros do modernismo, com exceção de um ou outro hoje, dão a impressão de datados. As originalidades do Oswald de Andrade, são interessantes consideradas como feitas em 1920, mil novecentos e vinte e poucos. Já o Macunaíma é um livro que, tão bem estruturado, tão bem composto no aproveitamento das fontes indígenas ligadas a uma visão maliciosa do caráter brasileiro, esse livro, a meu ver, fica independente de escola. Mas, as outras obras, essas daí valeram mais como um marco de uma evolução literária, um combate à rotina. Mas, como datadas que foram, elas já não têm hoje a intensidade que teria, digamos, a obra de um Guimarães Rosa, que, embora não tenha assim ligação direta ou não tivesse ligação consciente com o modernismo, pode ser considerada como um fruto evidente do modernismo.
Pergunta número seis: “Como você avalia o papel das vanguardas literária, política, intelectual etc., e qual é a sua relação com tais vanguardas?”
Eu não me dou bem com as vanguardas, ou as vanguardas não se dão bem comigo. Eu lamento muito, mas não posso fazer nada, porque eu acho as vanguardas uma coisa puramente superficial, e que não deixa traço na vida cultural brasileira. O vanguardista é um homem que rompe com todos os cânones, procura fazer uma coisa de estardalhaço, de ruído, de escândalo, e que passa com maior rapidez possível. Hoje, acho que ninguém fala mais em poesia concreta, em poesia práxis nessas coisas. Elas foram realmente curiosas na ocasião em que apareceram. Eles se gabam muito historicamente que na Suíça foram citados, na Alemanha e outros países da Europa, mas o fato é o seguinte, não fica uma poesia, eu estou falando da vanguarda poética, uma poesia que não tenha raízes profundas na sensibilidade humana e na consciência artística. Se nós queremos desarticular a linguagem a um ponto em que só restam palavras ou meias palavras, o resto são sons, ou meras consoantes ou meras vogais, então nós estamos desarticulando um trabalho que durante milhares e milhares de anos o homem fez para compor uma linguagem equilibrada, e artisticamente válida. É a negação da arte, é a negação da poesia, da literatura, do pensamento, é um brinquedo que não chamaria de maluco, mas é um brinquedo entre infantil e entre adulto, sem consciência, sem noção do que deva ser um brinquedo, que o caráter lúdico da criança geralmente é maravilhoso, nós todos já fomos criança, e lembramos com saudade do tempo em que nós inventávamos o brinquedo, que nós transformávamos um objeto num outro, tínhamos uma visão fantástica da vida. Então, não podendo ver, nós convivíamos com príncipes, com fadas, com dragões, com uma porção de coisas que não existem na realidade, mas dentro da atmosfera infantil, aquela coisa era uma realidade viva. Então, eu acho uma criança muito mais criativa do que um poeta adulto que as frases aparentemente estranhas, ou frases chocantes, das quais não resulta nada. Eu acho que a história da literatura não é a história da vanguarda. A vanguarda são, por assim dizer, intervalos numa evolução que se processa de uma maneira muito diferente.
Pergunta número sete: “Aos 21 anos, como você se imaginava com a idade que tem hoje? Tinha medo de envelhecer, que angústias em relação à velhice sentia nessa época?” Não, eu acho que aos 21 anos, não. Eu deveria ser um jovem como outro qualquer, assim que não tinha muita consciência da vida, e não sabia o que era a velhice, não podia saber, olhava para os velhos assim com uma certa pena deles, “coitados, estão velhos”, e não se dava conta de que um dia chegaria a nossa vez. Não guardo uma impressão muito grande da minha reação diante dos velhos, diante da hipótese da minha velhice.
A pergunta seguinte me parece que já está respondida, em todo caso não quero interferir. “De um modo geral, os jovens estão preparados para envelhecer? Por que as pessoas têm tanto medo da velhice?”
Eu acho que ninguém está preparado para envelhecer. É uma coisa que a vida se encarrega de nos trazer, sem que nós tenhamos pedido, nós não influímos nesse assunto, a mocidade não espera a velhice, não receia a velhice, e ninguém está preparado para envelhecer, ela vem como uma fatalidade biológica.
“Como você encara a morte?”
Aí é que está a pergunta realmente central da entrevista, porque, quando se fala em velhice, no fundo nós estamos escamoteando um nome, que seria esse, como é que você considera a morte? O que é que você espera? O que você pensa da morte? Porque a velhice é apenas uma fase como a infância, a adolescência, como a mocidade, como a maturidade, então tudo são fragmentos de um conjunto que é a vida, com a particularidade apenas de que a velhice é aquele segmento, aquela parte da vida em que a idéia de morte se apresenta assim frontalmente. Na infância, ela não existe; na mocidade, não a consideramos; na maturidade, a gente começa a ter uma vaga noção de que a morte pode vir para nós como vem para as outras pessoas. Mas é na velhice que a idéia de morte se realiza plenamente, com todo vigor, com toda nitidez. Primeiro porque nós vemos os nossos amigos envelhecerem, nós não percebemos muito a nossa velhice. Mas convivendo com pessoas que dia a dia aparecem com os traços do rosto mais marcados, com o cabelo mais branqueado ou ausente, com os gestos mais lentos, com o andar mais arrastado, e com interesses intelectuais e humanos de toda natureza mais limitados, nós nos damos conta de que existe a velhice. Mas, neste primeiro estágio, nós ainda nos consideramos privilegiados, porque nós ainda não reparamos na nossa velhice. É preciso que os outros reparem, é preciso que os outros nos tratem com atenções especiais ou com o desprezo pela velhice, é preciso que as outras pessoas que nos rodeiam nos façam sentir que nós estamos velhos. Aí, então, nós começamos a sentir realmente a velhice, mas sempre com uma resistência interior, com um esforço: “Eu estou velho fisicamente, mas eu não estou velho intelectualmente”; é diferente. Mas já agora não é propriamente a idéia de estar velho que nos preocupa, é a idéia da morte, de quando ela chegará. Eu acredito que essa idéia é fecunda, é boa, não é daquelas idéias que nos deprimem. É até conveniente que a gente pense nisso, porque do contrário nós nos arriscamos a ter uma surpresa terrível, se uma moléstia grave nos acomete, nos prende à cama ou nos invalida durante muito tempo, e nós não percebemos que aquela moléstia é uma moléstia preparatória da morte, que a morte chegou sob aquela forma cruel, mas uma das formas positivas.
Então, a idéia de morte, digo, eu me refiro a meu caso pessoal, ela está sempre presente na minha frente. Mas não se apresenta de uma forma assim muito dolorosa. Evidentemente não é agradável, não vou dizer que eu tenho prazer, eu não tenho prazer nenhum, preferia ficar por aqui mesmo, embora sob determinadas condições, uma delas é que não estivesse fisicamente inválido, incapaz de viver, de sentir, de amar, de brincar, de trabalhar, de fazer coisas, né? Então, a morte considerada assim com realismo, como um termo natural de uma vida, apresenta até, digamos, ás vezes, um aspecto consolador, porque ela significa uma extinção completa das crises, dos conflitos, dos tumultos que acompanham a vida humana desde o nascimento até o final. Evidentemente, não é uma idéia assim muito feliz, como estava dizendo, mas acredito que a preparação para a morte, seja um dos trabalhos filosóficos do ser humano mais recomendados. É a pessoa sentir que não é eterno, sentir que deve dar lugar aos mais moços, sentir que não deve levar ao trágico esse final, e preparar-se para não dar trabalho aos outros, na medida do possível, e sobretudo depois da morte, porque é muito chato o sujeito morrer deixando os seus negócios atrapalhados, deixando a vida complicada para a família, para os amigos etc. Isso eu acho que não é uma coisa má. E nesse sentido, tanto quanto é possível ver dentro de mim, eu não vejo muito claramente, não tenho esta luz mágica que me permite me conhecer perfeitamente, eu não acho que a idéia de morte não só fica sendo aceitável, razoável, como fica sendo uma coisa natural.
A pergunta número dez: “Você acha que o ‘fantasma’”, isso foi entre aspas, “que o fantasma da velhice pode levar alguém ao suicídio? Na sua opinião, o suicídio de Nava tem relação com esse fantasma?”
Eu não acho que o suicídio do velho seja um caso específico vinculado à velhice. Em qualquer idade as pessoas se matam. Há casos doloríssimos de crianças que se matam, os jovens não se falam, porque não sabem nada da vida, ficam perturbados com qualquer crise, acham que o mundo está acabado, não sabem resolver o problema, e se matam. Os homens maduros também, os velhos também. No caso dos velhos, pode haver até um suicídio, digamos, filosófico, um suicídio racionalizado, de pessoa que sentindo-se incapaz de viver, porque a vida já não oferece mais nenhum interesse, e a própria pessoa só oferece problemas, só com problema para os outros, então essa pessoa considera possível encerrar a sua vida, e se mata. Eu acho isso razoável. O caso do Pedro Nava não me parece tenha sido exatamente esse. Eu não posso analisá-lo bem porque Nava não deixou sinais de motivação do seu ato. Então, foi uma resolução, ao meu ver súbita, num momento de solidão em que ele não estava apoiado em nenhum amigo, nenhuma força solidária que pudesse demovê-lo dessa idéia, ele então, num momento de desespero, resolveu se eliminar. Respeito muito o ato dele, mas lamento muito que nós, os amigos dele, não tenhamos podido fazer alguma coisa por ele. Fazer aquilo que ele fez com um de nossos amigos que estava também disposto a suicidar-se em conseqüência de uma profunda depressão psicológica. Ele foi à casa desse amigo altas horas da noite, chamado pelo amigo, aliás, e tomou o revólver que ele tinha no quarto e intimou-o com a maior severidade a tratar-se, a reagir contra a depressão. Salvou a vida desse nosso amigo, e não salvou a sua própria. Mas acho, continuo achando, que o homem é dono do seu destino, é dono da sua vida, não posso acusá-lo.
Pergunta número onze: “Um dos principais medos da velhice está no temor da impotência sexual. Como você encara essa questão? Em que medido isso é verdade? E até que ponto não se trata de um preconceito?” (riso)
Você está dizendo que é um dos principais medos da velhice, vocês falam isso sem autoridade, porque vocês são jovens. O problema da sexualidade na velhice não é assim tão grave como pode parecer. De fato, perder, abrir mão dos prazeres da sexualidade não é nada agradável para ninguém, mas isso pode ocorrer em qualquer idade, não é privativo da velhice. Há casos até em que essa perda é até muito precoce. O que há é o seguinte, o que eu posso assegurar a vocês é que a sexualidade é um valor permanente na vida das pessoas, ela não desaparece, ela não acaba. Podem diminuir, reduzir-se, anular-se os meios de realização formal e habitual da sexualidade. Mas a imaginação criadora sempre opera nesses casos, e Deus, ou a natureza, seja que poder for, permite que as pessoas velhas também sintam prazer sexual independente das suas restrições fisiológicas. Posso tranqüilizar então vocês para uma futura velhice. (risos)
A última pergunta, não sei se é última, não, tem seguimento, a número doze “Por que a sociedade não prepara as pessoas para a velhice? Que interesses estão por trás de uma sociedade que marginaliza os velhos?”
Eu acho que vocês estão sendo muito rigorosos com relação à sociedade neste particular. A sociedade, em certo sentido, ela prepara, ela tem um certo apreço pelos velhos. As provas são as organizações existentes no mundo de previdência social. Todo país hoje, todo Estado tem um órgão de previdência social. Ele é deficiente, ele sofre as conseqüências da falta de poder econômico, das restrições financeiras, mas existe, coisa que não existia no Brasil da minha infância, da minha mocidade. Há sessenta anos atrás não havia nada, havia uma coisa tétrica chamada Asilo da Velhice Desamparada. Era uma coisa tão triste, a começar pelo nome, que as próprias pessoas que se internassem lá deviam sentir-se infelizes, porque chamar a velhice de abandonada é realmente cruel. Então, esses asilos deveriam ser lamentáveis. Hoje, não. Hoje existem clínicas geriátricas onde as pessoas, mediante um pagamento ajustado, têm os prazeres da convivência com outras pessoas da mesma idade, têm um ambiente em que elas podem jogar, podem brincar, e podem namorar também. Então , é assim. Agora, o estado não é deficiente só no tratamento aos velhos. O Estado é deficiente em tudo, pelo menos no nosso país. O Estado é deficiente na educação primária, secundária e universitária. O Estado é deficiente nos programas de saúde, nos programas de urbanização, em tudo mais de urbanismo. Então, eu acredito que não haja da parte do Estado, como força assim organizadora, controladora da vida social, intenção de desprezar os velhinhos. O que há muitas vezes é que o Estado é incapaz, é incompetente para fazer os programas e para executá-los, dando condições realmente de conforto, de estabilidade, de segurança aos velhinhos.
Não é mais uma pergunta, mas, enfim, a parte final da entrevista diz o seguinte: “Gostaria que você declamasse os versos seus que foram declamados oportunamente por uma senhora, dona Micaela”. Diz aqui: “Uma simpática senhora de 84 anos que também cedeu um pouco de seu tempo para os rapazes”. Parece que ela se referiu a esses versos, e eles pediram para que você dissesse.
São uns versinhos que eu fiz para um livro de memórias infantis em que eu me referia a pessoas da minha família e pessoas das relações, de pessoas que constituíam o mundo de Itabira, pequeno mundo de Itabira. E este é referente a minha irmã, Maria das Dores, a minha irmã caçula, que era o “ai-Jesus” da família. Meus pais tinham por ela um encantamento especial. Era uma garota muito bonita, como foi também uma moça muito bonita, já morreu. O poeminha é o seguinte:
Era um brinquedo Maria Era uma história Maria Era uma nuvem Maria Era uma graça Maria Era um bocado Maria Era um mar de amor Maria Era uma vez, era um dia, Maria
Há ainda aqui um pós-escrito, que diz o seguinte: “Procuramos sintetizar nessas doze perguntas a relação do poeta com a velhice. O tema é amplo e complexo, reservamos esse espaço final para uma eventual abordagem que você julgue necessária, e que nos tenha fugido de alguma forma na concepção das questões”. Não me ocorre dizer nada de especial, achei as perguntas interessantes, e respondi com prazer, sem nenhum constrangimento. Não omiti resposta nenhuma, e vocês tinham me autorizado a isso, mas não havia nada a omitir. Eu quero agradecer a Rachel e seus companheiros pela simpatia que manifestaram por mim fazendo essas perguntas a esse velhinho que se sente muito satisfeito, muito contente. Um abraço pra vocês todos.
Ia me esquecendo, vou fazer um pós-escrito verbal. Esta entrevista
resultou de uma reunião familiar, estamos todos aqui no meu escritório,
minha filha Maria Julieta foi quem leu as perguntas para mim, quem ajudou
a manobrar o gravador foi o meu neto Pedro Augusto; e tudo isso foi assistido pela minha querida companheira de 59 anos de casamento, Dolores.
Um abraço e um beijo para vocês todos.