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A postagem do Morro

Saí de Cordisburgo no meio da tarde sentido noroeste para Curvelo. Estrada de terra com muitas costeletas, ainda na região do calcário. Próximo à Gruta de Maquiné me lembrei do conto “O Recado do Morro”, que se passa na localidade do meu próximo destino, onde o cordisburguense descreve a formação dos espeleotemas, o gotejamento da água ácida em contato com o CO2 que dá origem às estalactites, estalagmites e colunas:

“(…) do teto de umas poreja, solta do tempo, a aguinha estrilando salobra, minando sem fim num gotejo, que vira pedra no ar, se endurece e dependura, por toda a vida (…) enquanto do chão sobem outras, como crescidos dentes, como que aquelas sejam goelas da terra, com boca para morder.”

Cheguei em Curvelo já no cair da noite, um tanto aliviado pelo início do asfalto nos últimos sete quilômetros.

No centro da cidade busquei no GPS e encontrei um hotel adequado, preço camarada, com garagem para guardar a bicicleta e um café-da-manhã que prometia. Estava exausto mas ainda consegui dar uma volta à pé pelos arredores, depois de tirar a poeira do corpo. Curvelo é uma cidade de médio-porte, pólo agregador da região com muitos serviços disponíveis, um clima de interior e alguns problemas de cidade grande, como drogas e violência.

De Curvelo para Morro da Garça fui pelo asfalto por um erro de indicação. No posto onde deveria pegar a estradinha de terra que passava ao lado – depois eu confirmei – um frentista me disse que a única forma de se chegar em Morro da Garça era seguindo pelo asfalto. Desconfiei, mas não quis argumentar.

Fiquei muito impressionado com um Lobo Guará morto no acostamento, o corpo já em estado avançado de decomposição. Certamente um atropelamento por carro pequeno, porque era subida e provavelmente à noite, quando os lobos costumam perambular a procura de alimento. Mas não houve dúvida, pela cor e espessura da pelagem, as quatro patas calçadas, o lombo e a ponta do rabo de pelo escuro, as orelhas grandes e a arcada característica. Foi no quilometro 23, marcado do centro de Curvelo no sentido de Corinto, pouco antes do Posto Paraíso. Os pesquisadores que controlam a população dos Lobos Guará podem se interessar em recolher a carcaça para pesquisa.

Morro da Garça está no centro geodésico de Minas Gerais e isso confere uma mística diferente ao lugar. Na região predominam as formações geológicas Lagoa do Jacaré e Serra da Saudade. O morro famoso chama atenção pela sua forma vulcânica arredondada, isolado na paisagem plana do cerrado em volta.

Seguindo a dica da Ana Luisa, me hospedo na pensão da Pretinha, que também serve comida e está sempre cheia de gente.

Na mesa grande da pensão, na hora do almoço, me sento junto com uma equipe de filmagens de São Paulo que está gravando um documentário.

No primeiro dia conheço também o Adilson. Simpático e falante, entra no meu quarto com um conto para me mostrar. Em sua companhia subi o Morro da Garça propriamente dito, chamado pelos habitantes de Morrão. Ele me conta as lendas em torno da formação que dá nome à cidade, muitas delas inventadas por ele próprio, ficcionista nato. Quem quiser entrar nesse universo pode acessar o blog Histórias Fantásticas de Adilson Silveira: http://adilsonbomdeprosa.blogspot.com.br/

Na volta, passando em frente à Casa de Cultura das Crianças do Sertão, as luzes acesas, resolvemos entrar para ver o que estava acontecendo. Era um encontro de contadores de história organizado pela Dona Fátima a pedido da pesquisadora paulista Noemi, do Cultura e Saber.

Entre os contadores, dois integrantes da Guaiana, uma manifestação rara da cultura popular do interior de Minas, cantada por seis, até oito vozes masculinas. Gravei alguns trechos da pequena demonstração e assim que conseguir editar e tiver conexão suficiente eu subo para a rede. Passa por lá também durante o encontro, rapidamente, o alemão Heinz Dieter Heidemann, professor da USP.

Morro da Garça está imersa na campanha eleitoral. De um lado o atual prefeito, Toninho, do outro o ex-prefeito Zé Maria. E é só o que se ouve nas conversas pelas esquinas. E é só o que se houve insistentemente nos carros e motos com som que circulam pela cidade minúscula com os jingles de campanha que impregnam o ambiente e perturbam a tranqüilidade da pacata cidade.

No último dia, antes de partir, fui almoçar na casa do candidato Zé Maria, a convite de sua mulher, Dona Fátima. Simpática professora aposentada, muito espirituosa, trabalhou na Secretaria de Estado de Educação e na de Turismo, ela é a responsável pela gestão cultural nos mandatos anteriores do marido. Dona Fátima desfila uma quantidade enorme de referências, publicações, gravações, eventos e nomes importantes de pesquisadores, professores, músicos e curiosos que passaram ou se relacionaram com cidade de alguma forma nos últimos anos. A freqüência quase exclusiva de forasteiros é de paulistas. Morro da Garça nesse sentido é uma espécie de laboratório de pesquisas rosianas da USP.

Difícil deixar a casa de Dona Fátima. Saio de lá, passo na pensão e volto para pegar os presentes que ela fica separando. Um disco, alguns panfletos, os contatos. Pego estrada com o sol já fazendo uma curva descendente, eram quase três horas.

Postado em 29/07/2012 Cavalo Motor

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

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