Maísa Moura
Solstício de Inverno [Chico Saraiva e Makely Ka]
Moçambique [Chico Saraiva e Makely Ka]
O Amor de Dentro [Makely Ka e Renato Negrão]
Casa de Areia [Makely Ka]
Seu Avô [Mário Sève e Makely Ka]
A Moura
Renato Negrão em Extravio
O CD de estréia da cantora mineira Maísa Moura é um dos trabalhos mais interessantes do mercado fonográfico atual. Além da voz de timbre raro, com coloração escura e expressão delicada, os arranjos sofisticados, quase sempre enxutos (por vezes até minimalistas) e o bom gosto que exala como um todo, o repertório consegue captar os lastros da decantação de uma tradição peninsular que herdamos e que fincou raízes no nordeste brasileiro. Para além da instrumentação, que mescla rabeca e violoncelo, sanfona e pandeiro, viola caipira e guitarra portuguesa, sitar indiano, saz turco e ronroco andino, os ecos dos árabes e bérberes que dominaram a Península Ibérica por oito séculos se faz sentir nas melodias modais, no acento rítmico das palavras, no lirismo agreste das letras.
O deserto percorre todo o disco, seja em arranjos que evocam a ação contínua dos ventos como em “Seu Avô”, seja na própria temática de canções como “Casa de Areia”, que descreve a ação inexorável do tempo e das forças naturais numa paisagem desolada. A solidão (Sombra, Terra Estrangeira, Extravio, Casa de Areia), a loucura (Canção do Lobisomem, Cego com Cego, Mortal Loucura), os rituais de passagem (Solstício de Inverno, Moçambique) assim como os pequenos prazeres e as belezas mais recônditas (O Pidido, O amor de Dentro, Ímpar ou Ímpar) insurgem com uma força arrebatadora que nos coloca diante do imponderável da vida. Cada nota soa como cristais de areia e sal que atravessaram o atlântico em correntes de ventos marítimos e formaram aqui paisagens sonoras inusitadas.
Por outro lado, consciente de que a influência moura aqui deste lado se fez presente por apropriação e justaposição constante de elementos da cultura árabe com a cultura negra, indígena e européia branca, através de fusões melódicas, rítmicas e instrumentais, o disco não se prende a um estilo ou gênero específico que possa dar ao trabalho o caráter de música árabe ou oriental, por assim dizer. Pelo contrário, o que se dá é um diálogo profundo com a melhor tradição da música brasileira e isso, por si só, explica e justifica seu ecletismo e sua profusão de referências implícitas. O tempero mourisco, por sua vez, surge amalgamando a multiplicidade nos pequenos detalhes, nos intervalos de tons audíveis apenas para os ouvidos treinados, nas escalas nordestinas que pontuam uma e outra melodia, nos silêncios suaves e nas respirações suspensas. Apesar de incontestável, a herança ibérica é sutil, às vezes subliminar, tornando a audição uma verdadeira aventura através do tempo e do espaço sonoro. E não é por acaso que o disco remete ainda aos gregos, a começar pelo próprio nome. Afinal, foram os árabes que re-introduziram a cultura grega na Europa medieval cristã.
O tecido fino dessa Moira interliga conceitos e idéias esquecidos no baú de nossa memória ancestral. O fio da tradição oral se torna por isso um guia imprescindível para nos orientarmos na travessia desse labirinto implacável de sons e sentidos. Não será surpresa tampouco se Cloto fiar essa linha de Ariadne na roca contemporânea que engendra a rede mundial conectada por fibras óticas. Nas mãos das Parcas as tessituras da vida se entrelaçam para determinar nosso destino. Maísa é uma fiandeira de sons e não há como passar imune aos seus sortilégios. A não ser que você tenha cera nos ouvidos!
Por Makely Ka