Saí de Chapada Gaúcha e segui pela estrada de cascalho grosso no sentido de Serra das Araras. A placa na saída da cidade indicava 37 Km. Fui deixando as plantações e entrando de volta no cerrado, campo sujo, depois carrasco e cerrado fechado. Ganhei novamente a companhia das corujas buraqueiras. Muitos ipês amarelos floridos e flor de cigano pelo caminho. Havia duas possibilidades de desvio: Ribeirão da Areia e Vão do Buraco. Contornando a serra onde nasce o rio Pardo, afluente do São Francisco, a primeira placa que avistei foi da Comunidade de Ribeirão da Areia, à direita. Decidi pegar os sete quilometros da estradinha de areia e procurar pelo Seu Sebastião, fabricante de violas e rabecas. Tinha indicação do pessoal do Instituto Rosa e Sertão e também do Museu Guimarães Rosa, onde vi uma de suas rabecas em exposição.
Ribeirão da Areia é um lugar bonito, aberto, iluminado. Se estende por uma planície com muitos buritis e pequenos rebanhos de gado espalhados pelos campos de braquiária. As casas simples seguem o curso do córrego de água cristalina que deságua na margem esquerda do Urucuia, muitos quilômetros abaixo. Encontrei Seu Sebastião vindo de uma farinhada e ele parecia cansado, mas foi o tempo todo solícito. Me levou até o quarto ao lado da casa onde usava como depósito e “oficina”, me mostrou as fôrmas, as peças de madeira para a construção dos instrumentos. Me mostrou por fim duas rabecas que tinha prontas, ensacadas: uma de mulungu, também chamada de mata-cachorro e outra de imburana. Me falou da dificuldade de encontrar madeira para os instrumentos hoje em dia, deu detalhes da técnica de fabricação que aprendeu com seu avô, das encomendas que recebe. Pedi para fazer uma foto dos instrumentos, fomos para a frente da casa e ele arranjou um velho banco de madeira para apoiá-las. Depois entramos na casa e ele tocou algumas pequenas peças instrumentais, alternando uma e outra, explicando as diferenças de timbre e projeção em função da madeira e do tamanho das respectivas caixas de ressonância. Falou das folias, das festas onde costuma tocar. Gravei alguns minutos de vídeo e fiz mais algumas fotos. Fiquei com vontade de levar uma delas, a menor, de imburana, mas não tinha mais espaço na bagagem nem um estojo de proteção para transportar o instrumento sem risco de danificá-lo. Encomendei uma para receber pelo correio. No dia seguinte veio a certeza dessa decisão. O papo estava bom mas eu precisava seguir viagem. Pedi então informação sobre o caminho e ganhei esse desenho:
“Daqui para a Serra das Araras você cruza o rio de volta, passa à direita da igreja e atravessa o córrego Sucruiú. Depois tem uma cancela, vira a esquerda e sai num mata-burro. Passa um colchete, a escola, depois os assentamentos e margeia o Sucruiú até a cabeceira beirando as veredas. Mas não entra no “gaio” à direita, pega sempre à esquerda da banda de cá dos buritis pra sair lá no Valdemar, no pé da serra que dá pro mirante do Vão do Buraco. Você vai fazer um ‘U’ para pegar de novo a estrada principal sem voltar pra trás ”
Nessas ocasiões a gente vai montando um mapa mental imaginário, um GPS cognitivo formado por sinapses de imagens, cheiros e sons. Verifiquei depois o trajeto registrado no aparelho e o caminho percorrido, desde a entrada com a plaquinha na beira da estrada encascalhada, passando pela comunidade e retornando novamente a ela, eu havia feito de fato um percurso em forma de ‘U’ como pode ser verificado no mapa do Google Earth.
Fiquei intrigado com a referência a um ribeirão chamado Sucruiú. No “Grande Sertão: Veredas” esse é o nome de um povoado assolado por uma peste de bexiga preta, a varíola contagiosa, próximo do Pubo, onde os jagunços se encontram com os catrumanos. Um levantamento cartográfico mais minucioso no entanto indica que o povoado do Sucruiú deveria estar mais ao sul, em local incerto.
Quando voltei para a estrada principal, depois de margear a vereda do Sucruiú, cheguei em frente a casa do Valdemar, afastada uns duzentos metros da beira da estrada. Voltando trezentos metros cheguei no bar, já desativado, e atalhei de lá a trilha de dois quilômetros para um dos mirantes do Vão do Buraco. A visão panorâmica daquele vale recortado por grandes escarpas no final da tarde, com o Rio Pardo correndo no fundo entre as veredas é impressionante. Claro que tive vontade de descer, mas teria de deixar a bicicleta com a bagagem e seguir à pé. As casinhas espalhadas naquela cratera encrustrada entre as montanhas pareciam cenário de conto de literatura fantástica. Mas já estava quase escurecendo e resolvi retornar para a estrada principal e seguir até Serra das Araras, meu objetivo final naquele dia. Foram dez léguas pedaladas aquele dia.
Em Serra das Araras me hospedei na Tia Elza, com a intenção de sair no dia seguinte. Música alta em carros de som, propaganda eleitoral, o mesmo quadro reincidente. Acordei, dei uma volta na praça, consegui as informações que queria sobre o trajeto e parti. Estou mesmo sem paciência com as cidades, com os ruídos, a falta de sentido nesses aglomerados de gente. Mesmo nas cidades pequenas a reprodução de atitudes recorrentes em qualquer metrópole, desde o lixo jogado de forma displicente no chão até a falta de possibilidade de diálogo além do que está pautado pela grande imprensa. Prefiro o ermo dos chapadões. Mas vai ouvindo…
Saí de Serra das Araras depois de tentar encontrar, sem sucesso, o local onde o jagunço Antônio Dó teria sido enterrado. Ali era seu quartel-general, onde ele se refugiava e ditava as leis. Era conhecido e temido em todo o sertão dos Gerais. Hoje ninguém dá notícias, ninguém sabe quem foi, nunca ouviram falar.
Pouco mais de uma légua depois da saída da cidade encontrei a entrada para Urucuia num “galho” em frente ao posto do IEF (Instituto Estadual de Florestas). A partir dali saí do cascalho e foi só areia. Em terreno arenoso o esforço para vencer os bancos é maior e consequentemente você transpira mais, perde mais água. A falta de água nessas condições é uma preocupação constante. Entrando nos Chapadões do Urucuia não há nada numa distância de quase 80 km. Só cerrado, com muito carrasco e campos sujos. A estrada atravessa a Reserva Estadual Veredas do Acari. Dentro da reserva passei por duas carvoeiras desativadas. Sei que contornei a cabeceira do rio Acari, que nasce dentro da reserva, mas é um cerradão fechado sem possibilidade de acesso ao manancial. Esse foi o trecho mais ermo da viagem, mais até do que a entrada em território baiano, na travessia do Liso do Suçuarão. Além de moradores ao longo do caminho, naquele trecho de aproximadamente 110 Km de Bonito de Minas até Cajueiro, distrito de Cocos na Bahia, estávamos em três e cruzamos o Córrego Catolé, passamos pela Várzea da Ema, pelo rio Cochá e finalmente o Carinhanha, na divisa dos estados. No Chapadão do Urucuia, além de estar novamente sozinho, percorri um trecho de mais de 70 km sem avistar nenhuma casa, nenhum riacho, nem gado se vê até chegar ao povoado de Nova Santa Cruz. Se o Liso é o extremo, o Chapadão é o miolo do sertão e, como o pequi, tem espinho.
Muita areia, cansaço, a água já no fim. Esse era o quadro faltando três quartos de hora para escurecer. Apesar disso eu estava tranqüilo e, pelos meus cálculos, se não acontecesse nenhum imprevisto, em duas horas e meia estaria em Urucuia. Imprevisto na verdade é uma metáfora que eu costumo usar para surpresas agradáveis, um animal, uma paisagem, um som diferente, um personagem, qualquer motivo para encostar a bicicleta, tirar o equipamento do alforge e registrar. Mas nem tudo saiu como eu previa e surgiu uma surpresa desagradável: a garupa resolveu quebrar e a bagagem com alforge, barraca e o equipamento foi toda ao chão. Estava no meio da areia, praticamente sem água, a muitas léguas da cidade mais próxima. Fiquei pensando se teria um lugar pior para aquela garupa quebrar. Minha bagagem, fora a bicicleta, pesa mais de 30 Kg, o que eliminava a possibilidade de transportá-la de outra forma que não fosse atrelada ao bagageiro. Se não conseguisse consertar teria de acampar ali e aguardar um carro passar no dia seguinte. Mas desde que larguei a estrada principal, logo após a saída de Serra das Araras e entrei no “galho” para Urucuia não cruzei com nenhum veículo. Somente um vaqueiro montado em seu cavalo campeando gado, isso logo no início, ainda próximo da cidade. Esse vaqueiro inclusive me arranjou um pouco de água – e ainda assim não foi suficiente – para completar minha reserva.
Como quase não tinha mais água para beber, muito menos para cozinhar, se acampasse provavelmente teria de beber urina. Não seria uma noite fácil e por isso resolvi tentar consertar a garupa da forma como fosse possível e seguir viagem. Não é uma decisão fácil, quando você resolve acampar na estrada o ideal é aproveitar a luz natural para escolher um local seguro, fora de visão, plano e limpo para montar o acampamento. Corria portanto o risco de ter de montar a barraca à noite, mais cansado e com mais sede. Além disso o bagageiro quebrou no encaixe que fica preso no cano do selim e quando a carga arriou quebrou também um dos encaixes que se fixa no eixo traseiro. Como se não bastasse, afinal tudo pode ficar um pouco pior, me passa o único veículo que cruzei em todo o caminho, uma moto com dois sujeitos, eu tentando consertar a garupa e ele me diz: “arruma logo e sai daqui por causa das onças, o IEF soltou várias nessa reserva”! Eu vinha ouvindo histórias de onça desde Morro da Garça. Na Barra do Rio-de-Janeiro me falaram pela primeira vez dessas onças soltas pelo Instituto Estadual de Florestas. Na Fazenda São Francisco confirmaram. Depois ouvi a mesma história em outras versões, variando o local, o tipo e o número de onças libertadas: suçuaranas, pintadas, pretas, pardas, maracajás, jaguatiricas. Pelos meus cálculos a população de onças no sertão está equiparando com a de gado nelore. Certamente já ultrapassa a de humanos, pois a densidade demográfica da região, segundo o IBGE, é de 5 hab/km2, a menor do estado. Não tenho medo de onça, elas não costumam atacar as pessoas, mas não gostei da idéia de ficar sem água.
Fiz uma gambiarra, amarrei com o cabo de aço da tranca e com uma goma que tinha de reserva as duas hastes quebradas no encaixe do quadro com o cano do selim. Embaixo, nos eixos traseiros, como havia dois furos em cada lado, eu encaixei um dos lados e o outro ficou apenas apoiado, mas firme o suficiente com o aperto da porca. O resultado é que o bagageiro ficou mais baixo, quase encostando no pneu, e esbarrando no calcanhar enquanto pedalava. Também não tinha certeza se ia aguentar muitos quilômetros de areia e costeletas, mas era o que podia ser feito naquelas condições. Isso tomou muito tempo, além de fragilizar toda a carga e não era mais possível chegar em Urucuia. Me lembrei da rabeca do Seu Sebastião, se estivesse comigo ela provavelmente teria virado lenha com a queda dos alforges. Voltei a pedalar com a garupa amarrada, um tanto aliviado mas ainda tenso com a possibilidade de quebrar novamente. Finalmente consegui chegar em Nova Santa Cruz e foi a primeira vez durante toda a viagem que fiquei feliz ao ouvir música alta. Era a certeza de que estava próximo de algum lugar habitado. Tinha escurecido há muitas horas no breu do Urucuia!
Caboclo Makely, desejo que tudo transcorra muito bem…
o relato me instigou de uma forma que muito me agrada, saber das coisas da vida de uma forma natural como você faz deixa meu ser mais tranquilo, o planeta, os povoados e as pessoas resistem em harmonia com a natureza, e aquilo que costumamos ver e ouvir nas metrópolis parece não passar de algo mais… obrigado.
Harmonia e força nos caminhos da vida!
Querido Hermano,
Sua travessia como a de Riobaldo muito me emociona e inspira… A cada relato sinto a força do sertão pulsar nas veias e tenho saudades de coisas que nem nunca vi, ou vivi… mas que de alguma forma vislubrei através de seus olhos de suas vivências nesta longa jornada, com todo o vigor e resplendor dessa aventura! Certeza que o show, o CD, o vídeo e o livro serão profundos e maravilhosos como a tua travessia pelos gerais… Abraços
Demais os seus textos, tô garrada nessa viagem, pedra por pedra. minha alma viaja por aí enquanto meu corpo serve a corporação e o capital aqui nessas torres ebúrneas de Sampa. Você tem o contato do seu Sebastião das rabecas? Quanto ele cobra por uma? Queria uma de mulungu, uma das minhas árvores favoritas. boa viagem, beijos, Regina
Valeu pelas palavras Regina, te passei o contato do Seu Sebastião por e-meio.
Beijos