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Diário de Bordo: Buenos Aires

El Afronte Orquesta Típica na Feria de Santelmo

Sei que estou afastado, que abandonei este blogue nas últimas semanas. Mas as correrias tem sido muitas. Desde o ano passado que entrei no olho do furacão e não há previsão dos ventos soprarem mais brandos.

Nunca me obriguei a fazer ou publicar relatos de minhas viagens. Muitas vezes é um tédio, compromissos burocráticos, seminários, feiras, reuniões. Mas as pessoas ficam curiosas, sempre perguntam. Me lembrei de um texto do Walter Benjamin chamado “O Narrador”, onde ele diz que o narrador é, por definição, um viajante, e que dele não se espera nada menos que o relato do novo, do desconhecido. Nesses tempos de Gloogle Earth, Wikipedia, Youtube e Twitter nada é tão novo e desconhecido ao redor do planeta. Mas nem por isso as pessoas pararam de se interessar pelo relato dos viajantes.

Vou falar então de algumas coisas que foram novidades para mim nessas viagens recentes – algumas nem tão recentes – e que quero compartilhar com os leitores desse blogue. Nada demais, mas ao menos eu atualizo o blogue sem precisar falar sobre a crise no Senado!


Religiões portenhas

Como não terminei o relato portenho, re-começo pela peregrinação atrás das casas de tango numa fria madrugada de setembro em Buenos Aires. Depois de alguma pesquisa a indicação era de uma casa chamada “El Boliche del Roberto”. Pensei, mas um boliche? Fui com o pé atrás, mas a fonte parecia confiável e me garantiu que ali eu encontraria o que não se encontra nas casas de tango-show, caça-níqueis de turistas.. Não teve erro, boliches são os equivalentes argentinos a nossas biroscas, botecos, bitacas. Não havia, pelo menos nos que eu fui, sequer uma mesa de sinuca ou de totó, muito menos uma pista onde se busca strikes! Havia música ao vivo, acústica, tango cantado acompanhado por violão. Mais uma vez eu me surpreendi, como aconteceu em Lisboa e em Sevilha, com o silêncio religioso durante aqueles sets de cinco ou seis músicas intercedidos por intervalos de vinte minutos. A maior parte do público eram argentinos que conheciam o repertório inteiramente e, num local onde havia pelo menos umas cem pessoas, podia-se ouvir perfeitamente de qualquer parte da casa os senhores que dispensavam microfones e sistemas de amplificação que não a caixa de ressonância de seus violões e de seus próprios pulmões!

É inevitável a comparação. Imagine ouvir em qualquer cidade do Brasil um repertório com clássicos de Cartola, Nelson Cavaquinho, Lupicínio Rodrigues, Geraldo Pereira nessas condições? Impossível!

Mas eu iria me surpreender ainda mais. Dia seguinte fui ao Clube Fernández Fierro Orquesta Típica. Uma espécie de galpão, com mesas e cadeiras e um palco ao fundo, atrás de uma tela de proteção. O palco era ocupado por dez pessoas: piano, contrabaixo acústico, dois violinos, violoncelo, três bandoneons e um mestre de cerimônias, que em certos momentos assumia o microfone para apresentar as músicas, entreter a platéia ou recitar um poema sobre a base musical.

O mais impressionante é que embora a formação fosse de uma orquestra típica de tango, com uma estrutura semelhante ao octeto de Piazzola, a atitude dos músicos no palco era a de uma banda punk. A forma furiosa e performática com que eles tocavam, os contrapontos absurdos que eles faziam questão de ressaltar, causavam ainda mais impacto por ser aquele lugar, com aquelas características e com aquela luz. Certamente, poucas vezes vi a iluminação interferir tanto num espetáculo musical quanto daquela vez. A linha de frente do palco, com os três bandoneons alinhados, liderados por um bandoneonista mascarado e com longos cabelos rastafári, executava seus instrumentos com tanta maestria e fúria que a performance se transformava em algo da ordem do fantástico, dada a plasticidade do instrumento que ora parecia em sua amplitude as pernas abertas de uma dançarina nas mãos firmes de seu parceiro em pleno vôo.

Depois disso eu assisti também um concerto do Fito Paes, mas nada que me causasse uma impressão sequer próxima da Orquestra. O mais curioso para mim foi a reação da platéia, que se comportava como se estivesse num jogo de futebol, cantando e torcendo ao mesmo tempo. Com efeito, o tango e o futebol são uma espécie de religião para o argentino. Num dos passeios, próximo à Casa Rosada, me deparei com um grupo de manifestantes que reinvindicava algo ruidosamente. Mas não era um movimento de trabalhadores contestando uma medida tomada pelo governo, sequer era uma classe social definida: eram torcedores do Racing reinvindicando apoio do governo para determinadas ações que deveriam ser tomadas em relação ao clube.

Retornei no dia seguinte e quando fui à Calle Florida procurar discos e regalos, me assustei com uma enorme fila que virava quarteirões. Pensei: será que estão comprando ingressos para ver o jogo da seleção argentina? Nada disso, eram os fãs de Madona se acotovelando.

Postado em 08/08/2009 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

(10) respostas

  1. Pedro Paulo
    08/08/2009 de 09:48 · Responder

    Rapaz, quanto tempo não venho por aqui. Estava viajando pelo Vale do Jequitinhonha, num projeto de intervenção social, voltei há pouco tempo. A Argentina é mesmo um país muito rico culturalmente e musicalmente (como aqui); mas a diferença, na minha opinião, é que a maioria da população dá muito valor a isso. Eles realmente dão valor e colhem os frutos que foram produzidos no decorrer da história de seu povo. A mentalidade política do argentino também é muito diferente da média dos brasileiros, infelizmente. Mas todo esse assunto dá muito pano pra manga, e muitos podem não concordar; então, paremos por aqui. Quando fui pra lá, fiquei exatamente em San Telmo, aquele bairro extraordinário – aquela feirinha de domingo é muito boa, não é mesmo? Ouvi três caras tocando música judia, a banda chamava-se Babel Orquestra. Muito bacana! Lá tem de tudo, muito bom. Até mais!

  2. bruno brum
    08/08/2009 de 15:17 · Responder

    Gosto muito da Orchetra Típica Fernandes Fierro. Quanto às viagens e aos viajantes, não conheço esse texto do Benjamin, mas acho muito legal o capítulo de abertura do Tristes Trópicos, em que o L. Strauss fala mais ou menos disso, e com direito àquela mais que irônica e emblemática frase inicial: "Odeio as viagens e os viajantes." Abraço!

  3. makely
    08/08/2009 de 15:48 · Responder

    Seja bem-vindo de volta Pedro!

    Bruno, em geral eu acho um tédio a maioria dos relatos. E o mais curioso do Lévi-Strauss é que ele foi um dos intelectuais que mais viajou. Tristes Trópicos inclusive é um diário de viagem, aliás, uma das melhores narrativas de viajantes estrangeiros pelo país desde Viagem à Terra do Brasil do Jean de Lery. Abraços

  4. Bruno
    09/08/2009 de 19:19 · Responder

    Makely, Tristes Trópicos é um assombro, um livro maravilhoso. E, claro, um relato de viagens. Por isso acho irônica a frase que o abre. Me vêm à cabeça agora dois outros livros escritos a partir desse tipo de diário: On the Road e Verdes Vales do Fim do Mundo. Dois livros que também gosto muito. Enfim, acho que no fundo sou um fã do "gênero" relato de viagens… rsrsrsrsr. Abraço.

  5. makely
    09/08/2009 de 23:39 · Responder

    Pois é Bruno, mas não é todo mundo que escreve como o Lévi-Strauss, o Jack Kerouac ou Antônio Bivar. Acho que no fundo você é fã dos bons escritores!

    Abraços

  6. Pedro Paulo
    15/08/2009 de 07:44 · Responder

    "On the Road" é mesmo sensacional…

  7. Andréa
    22/08/2009 de 18:02 · Responder

    makely, querido!
    passei a dica para o meu namorado que tava indo pra buenos aires.
    ele disse que foi um dos melhores programas que ele fez! adorou e pediu pra agradecer. vou falar pra ele pintar por aqui… ele tirou lindas fotos, quando ele publicar passo o link.
    e vc quando vem ao rio? hoje mostrei 'moira' pra um amigo, cantor. ele adorou!
    beijos

  8. Andréa
    22/08/2009 de 18:05 · Responder

    ah… tava flando da Orchetra Típica Fernandes Fierro…….. hehe

  9. Guilherme Castro
    16/09/2009 de 20:55 · Responder

    Muito bom!!!

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