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Eles se atrevem a dizer do que é feito o samba

Publicado na Revista do Itaú Cultural

Seis músicos (que não são sambistas) falam de suas memórias afetivas em relação à música do brasileiro e dizem o que é o samba para eles

Por Augusto Paim e Marco Aurélio Fiochi

O grupo Los Hermanos, no disco Ventura (2003), faz o seguinte questionamento na letra da canção “Samba a Dois”: “Quem se atreve a me dizer do que é feito o samba?”. Afinal, só os sambistas têm o que dizer sobre o samba? Ou todos os brasileiros podem opinar sobre esse som?

A Continuum procurou artistas de valor reconhecido em estilos musicais distintos e lhes propôs a pergunta: o que é o samba para você? O gaúcho Vítor Ramil, cuja “estética do frio” está ligada à cultura do Prata, fala do Carnaval de Pelotas como fundamental na formação da sua visão de mundo e estética. Por caminho semelhante vai o paulista Maurício Pereira, que aponta esse estranhamento cultural e social em quatro diferentes momentos de sua vida. O alagoano Hermeto Pascoal fala do samba como mistura e componente da chamada “música universal”. O pernambucano Jorge Du Peixe, do Nação Zumbi, cria um mundo futurista, no qual o samba segue sendo fundamental na vida do brasileiro. O bandolinista carioca Hamilton de Holanda liga-o ao cotidiano do povo. E o mineiro Makely Ka relata uma relação pessoal com o gênero atravessada por fases que vão do amor à rejeição.

O Carnaval de Pelotas

“O samba responde pela minha experiência mais remota de emoção e prazer musical, artístico e estético. Digo isso não porque venho me especializando em combater estereótipos. Para mim, nascido na região tida como a mais ‘branca” do país e que falo em estética do frio num país mundialmente conhecido como tropical, o samba é mesmo coisa de origem, de infância, de formação. Coisa de sempre, para sempre.

Sou natural de Pelotas, Rio Grande do Sul, cidade que, em determinado momento de sua história, contou mais negros que brancos entre seus moradores; cidade que teve as primeiras escolas de samba do estado e um dos melhores carnavais do país (antes que o conceito de carnaval-espetáculo se disseminasse, levando à padronização quase total do Carnaval das regiões). Não foi, portanto, uma experiência à toa. Tampouco única, pois o Carnaval nunca é uma experiência solitária. Por exemplo, para não ficar entre meus conterrâneos: o percussionista argentino Ramiro Musotto, recentemente falecido, me disse certa vez que foi em Pelotas, quando criança, de passagem com os pais, que ele conheceu o samba, os tambores e os negros, e que isso foi determinante em sua vida.

Naquela época, o Carnaval de rua de Pelotas não tinha cordões de isolamento. Na rua estreita, em meio à decoração e às luzes, o público ficava junto aos passistas, aos destaques, aos homens vestidos de mulher, aos mascarados, aos bonecos gigantes, o que fosse, e, glória absoluta, junto às baterias. Quando os tambores passavam por mim, eu chorava. O estremecimento se dava em todos os sentidos. Aquilo mexia mais que apenas com o meu corpo, dava forma à alegria mais profunda. Lembro da sensação e da consciência da sensação, rua de mão dupla por onde evolui o processo criativo de todo artista.

Depois do samba vieram as experiências do jazz, com o contrabaixo acústico de Tom & Jerry a ronronar em meu peito no escuro do cinema, e do tango, com meu pai cantando a chorar. O resto não é silêncio.” Vítor Ramil

Da enciclopédia galáctica da Afrociberdelia. Cap.: 003. Tão longe, tão perto
“Vi que nas periferias das grandes cidades do Brasil ainda residem resquícios da boemia antiga, da diáspora africana espalhada em novos quilombos. De um velho drama que tem como protagonistas a miséria e o desencanto. Desencanto floreado, entorpecido, com melodias nada simplórias… raiz nacional, resistência cultural, a memória de um povo que dribla as mazelas do dia a dia com um sorriso que vira mote e enredo. Grito maior da baixa voz dos desfavorecidos… que traz os mistérios de suas origens… do Recôncavo Baiano, passando pelos pagodes nos morros, que acendem e fazem o deleite do homem comum nas favelas, e sem demora descendo para o asfalto, fazendo dos clubes as telas… na Zona da Mata pernambucana, palco dos maracatus de baque solto, do esquema novo de Jorge Ben, do esquema noise da Mundo Livre S/A. Ainda escuto, seja em caixa de fósforos, seja em pandeiro, faca no prato ou no partido-alto, ecoando aos quatro cantos… Lembrando Donga, Candeia, João do Vale, Nelson Cavaquinho, Cartola, Pixinguinha, Bezerra da Silva, a velha guarda e a nova escola que compartilharam e compartilham a dor e a delícia em forma de canto ritmado, sincopado e alterado de um povo de sangue quente e alma fervente. Nesse solo, ritmo, poesia e dança são mais que urgentes! A memória gravada ou gritada nos acordes e batuques diários que acordam esquinas e emolduram desejos, esperanças e conquistas… tão longe, tão perto… simples, forte, original e eterno… isso é o samba.” Jorge Du Peixe

Naquela mesa
“O samba é a maneira que o povo encontrou de ser feliz em meio a tantas situações complicadas. Ele faz as pessoas transformar a tristeza numa coisa bonita. É o riso e o choro ao mesmo tempo. Nelson Cavaquinho, por exemplo, fazia melodias alegres e letras tristes, meio tenebrosas. Mas, quando se ouvem seus sambas, se vai para o céu, é uma coisa divina.

Minha relação com o samba aconteceu por meio do choro. Eu toco bandolim por causa do samba-choro “Naquela Mesa”, que Sergio Bittencourt fez para Jacob do Bandolim, seu pai, nos anos 1970. Eu tinha 5 anos em 1981, quando minha avó faleceu. Meu avô adorava essa música, e era louco por sua mulher. Então, ouvir esse samba era uma forma de ele sempre se lembrar dela. Ele me deu um bandolim no Natal daquele ano, e isso definiu minha vida profissional. Fico emocionado toda vez que toco essa música.” Hamilton de Holanda [depoimento à Continuum e trecho de entrevista à Rádio MPB FM, Rio de Janeiro, em 29 de julho de 2009]

Samba, ame-o ou deixe-o

“O samba para mim é um processo dialético! Na infância ele fez parte da minha vida como uma referência genérica. Ouvia no rádio, na rua, nas festas populares. Era uma afirmação de identidade, uma forma de resistência cultural − assim como a música nordestina − à imposição de uma música que representou no plano estético aquela pasteurização dos teclados e das baterias e no plano ideológico a negação de qualquer elemento regional autóctone. O segundo momento foi de negação. Coincide, de alguma forma, com a descoberta da farsa da autenticidade genuína do samba como manifestação popular. Isso que naquele momento de reação adolescente eu apenas intuí, aquela forçação de barra para fazer do samba uma instituição e que mais tarde confirmei, ou seja, o projeto do governo Vargas nos anos 1940 de transformar o samba em símbolo nacional. Há dois livros muito interessantes, de certa forma antagônicos, mas por isso mesmo complementares, que dissecam esse fato: “O Samba Agora Vai…”, do Tinhorão e “O Mistério do Samba”, do Hermano Vianna. Hoje acho que cheguei à síntese dialética. Definitivamente não sou sambista. Mas não nego sua influência no meu trabalho. Até tenho uns sambas. Quer dizer, não me sinto vinculado à tradição do gênero e não tenho nenhum compromisso com a instituição sagrada dos sambistas. Por outro lado, eu me sinto à vontade para compor utilizando elementos dessa linguagem, sem nenhum receio ou cerimônia. E não peço desculpas!” Makely Ka

Quatro pequenas lembranças: no espírito, na cabeça, no coração, no corpo
“Para situar: eu, paulistano, branco, classe média, nascido em 1959, italiano e português. Na cabeça, Beatles e jovem guarda. O samba não era sempre presente, mas, sempre quando presente, trazia susto e maravilha.

Lembrança 1: começo dos 1970, Corinthians no Pacaembu. A torcida do Fluminense traz uma charanga lá do Rio. Tamborins. Um samba mais leve, mais agudo, o andamento mais relaxado, uma respiração bem diferente da que costumava ouvir ali, mais rápido, mais forte, muita caixa e repinique. Senti como se pela primeira vez tomasse contato com algo mais roots: o samba no espírito do lugar onde ele nasceu.

Lembrança 2: Demônios da Garoa. Paixão total. O samba no gás: rápido, estridente, o intervalo sensacional nas vozes, as histórias do Adoniran. Uma coisa que me chamava a atenção no samba paulistano eram esses temas tão simples, conversas da rua, do dia a dia, o sotaque Brás-Mooca-Cambuci dos Demônios. E a pegada… Anos atrás toquei com eles, perguntei pro Ventura do 7 cordas: “rock-and-roll?” Ele deu risada, maroto, não respondeu. Será?

Lembrança 3: na adolescência me apresentaram Cartola. E me caiu a ficha da tal dolência, de que tanto se fala. O canto, o andamento, o jeito de tocar, o timbre da voz, a grandeza metafísica: humano demais. Com Cartola, o acesso à nobreza da negritude carioca. Um dia, sem querer(?), fui ver um show do Nelson Sargento na Funarte, em São Paulo. O cantor era o Roberto Silva. Maravilhei-me com a possibilidade infinita da finesse na expressão popular. Estava tudo ali, economicamente, o máximo de arte com um mínimo de matéria e esforço. Um traço do Matisse…

Lembrança 4: um belo dia me vejo em Santo Amaro da Purificação, Recôncavo Baiano, para entrevistar a Dona Edith do Prato e tentar capturar um pouco do espírito do samba de roda. O samba de quintal, sutil, sexual, sensual, sambado por gente dos 8 aos 80. Um samba doce e tão miúdo que eu, sudestinamente branco, quase precisei duma lupa para enxergar… Sola do pé, palma da mão, o sorriso, a roda, o quintal, a música tocada com descanso. Aquela música me explicou geografia: o calor, a umidade, as matriarcas, a região por onde a África entrou no Brasil, a pimenta, a brincadeira coletiva. Enfim, um pouco do mormaço do século XVII.” Maurício Pereira

A música universal
“O samba influenciou minha música e vai influenciar sempre porque faz parte da minha essência musical e, modéstia à parte, eu o toco muito bem, mas sem padronização e sem preconceito. Toco samba também em 7/4, 3/4, 5/4… O samba é um ingrediente importantíssimo na mistura que marca a minha “música universal” e é, por si só, um estilo híbrido que concentra essas características da mistura.

Meus primeiros contatos com o samba foram acompanhando cantores nas rádios do Recife e também tocando na noite no Rio e em São Paulo, com Miltinho, Moreira da Silva, Ciro Monteiro, Alvaiade, Jair Rodrigues… Eu tocava nas boates e quando eles vinham dar uma canja os acompanhava. Quando eu era criança no Nordeste, as pessoas iam lá em casa e nos convidavam para o “samba”, ou seja, para a festa, para a reunião com música… E lá eu já ouvia: “Ô Zé, para que você me quer, eu vou pro samba mas sustento dez mulher”.

O samba de antigamente era mais ‘quadrado’. Então, quem só quer conservar desse jeito fica para trás. É preciso evoluir. Mas misturar mal é pior. O samba abre vários caminhos para a criação, para a mistura, assim como o forró. Mas é preciso deixar o conservadorismo de lado.” Hermeto Pascoal

Postado em 02/01/2010 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

(2) respostas

  1. mary
    05/01/2010 de 13:38 · Responder

    bravo! 🙂

  2. makely
    05/01/2010 de 20:10 · Responder

    Salve Mary querida!

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