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Entrevista para a jornalista Ludmila Ribeiro

Um pop que suporta o peso da poesia crítica de Makely Ka. Autófago traz essa revelação. Evolução de sua carreira solo, construída com base em experimentações em produtivas parcerias. Em entrevista de “reconhecimento” para darmos início à parceria de lançamento deste novo trabalho, o artista auto-gestor, auto-produtor (um autófago de ponta a ponta!) aponta os caminhos trilhados em sua carreiro, dos discos A Outro Cidade e Danaide passando pelo livro Ego Excêntrico e pela Revista de Autofagia, até as articulações “extra-artísticas” que ele agiliza por aqui.

– Dois livros foram lançados e depois do disco coletivo “A Outra Cidade” com Kristoff Silva e Pablo Castro (2003) e do CD “A Danaide”, em parceria com Maísa Moura (2006), você lança o Autófago, disco inteiramente autoral*. O que ele representa na sua carreira?

Representa o momento em que uniu fragmentos, manifestações dispersas, momentos de produção isolada, realizada na vertente de poeta, compositor, auto-produtor, ativista, pensador e crítico da cultura, articulador. Foi o momento em que todas essas ações, presentes em todos os antigos trabalhos se reuniram pela primeira vez. Essas mesmas características podem ser descobertas no livro Ego Excêntrico, um primeiro apontamento do que viria a surgir 4 anos depois.

– Então a leitura do “Ego Excêntrico” acompanhada da audição do “Autófago” rende assunto?

O livro vem com um disco encartado, “Poemas para o Ouvido”. O novo disco é pra ser ouvido depois, com o encarte. Em “Autófago”, a música come a poesia e a poesia come a música. Uma coisa está imbricada na outra, não faz sentido dissociar. Apesar dos ruídos e das distorções de guitarra não é um disco em que as letras estão a reboque da música. A maior parte das letras precede a música, ou no máximo surge junto com ela.

– Diferentemente dos trabalhos anteriores, o “Autófago” traz letras elaboradas, porém sem o rebuscamento harmônico-melódico das músicas. Esse estilo menos rebuscado, mais tosco, suporta melhor o peso da sua poesia?

A falta de rebuscamento musical, sem harmonias mais sofisticadas interage melhor com a aspereza do discurso, com a minha necessidade de ir mais direto ao ponto. Não acho que faço música engajada, mas acho que não existe qualquer manifestação humana que não seja política. Você nasce em um país, com uma língua, dentro de uma família que tem um credo, uma posição dentro da sociedade, então qualquer atitude que você toma é política na vida. A omissão é muito pior do que o erro. Você pode fazer e errar, mas ficar com medo de errar é imperdoável.

– Inspirado em que você criou o “Autófago”, existe um tema central?

Com o autófago eu dou continuidade ao “Ego Excêntrico”, trabalhos que focam uma idéia de autonomia. Essa autonomia tem haver não com uma alienação, mas com a consciência do eu. Não preciso da opinião de quem forma opinião pra orientar meu trabalho. Isso tem a ver com fatores tecnológicos, por exemplo, quando não preciso mais da grande imprensa pra me informar, não preciso da grande indústria pra produzir… Nunca tivemos tanta oportunidade de ser autônomos, de buscar por si. O autófago tem a ver com isso.


Estamos num mundo cada vez mais globalizado, e paradoxalmente cada vez mais individualista, mas esse individualismo é justamente essa necessidade de não se anular. Individualista que não quer ser mais um entre milhões de habitantes. O autófago vem no sentido inverso desse individualismo, é uma autonomia para aceitar o outro, porque você tem certeza do que você é e do que você representa. Então você não precisa de adereço (marca de roupa, da última informação). Você dispensa o desnecessário.

– Mas o termo autófago também sugere uma autosuficiencia, um centralismo no eu.


Autófago pra mim vem de um processo de auto-suficiência do mercado, da não-dependência. Então vem a idéia de auto-produção e contra-indúsitra, que está amarrado. Porque a partir dos amos 90 passamos a contar com todas as ferramentas pra desenvolver um trabalho independente das grandes estruturas e até então os meios de produção, distribuição e veiculação nunca estiveram tão disponíveis e foram tão diversos.

Tem um outro sentido também do autófago que completa esse, que é o sentido da não-especialização. Desde a revolução industrial a tônica do profissionalismo é a ultra-especialização, ou seja, pra indústria era interessante o operário que domina uma única função com excelência, mas que não compreende o processo inteiro. Hoje temos o especialista na indústria do disco; por exemplo o especialista que só vende, ele não entende de música. O técnico de gravação só grava, o músico só compõe ou canta, não sabe como o produto dele vai chegar no público. E se você for pensar tem uma carga de ingenuidade aí também, porque o cara não queria perceber que a música dele tava dentro de um esquema de corrupção que é o jabá, ele provavelmente execrou publicamente os políticos que foram acusados de corrupção nos últimos escândalos, mas ele estava dentro de um esquema corrupto, que é o de pagar pra ter sua música executada nas rádios. É contraditório e na melhor das hipóteses ingenuidade.

– “Contra-indústria” é um termo que você também tem repercutido. A expressão “Autófago” tem a ver com isso? E o que mais?

O autófago tem a ver com essa autonomia e com essa mudança de paradigma, que é a contra-indústria, um conceito que bebe na idéia de contra cultura, ou seja não abrimos mão dos processos industriais, não estamos voltando para manufatura, mas estamos usando esses processos de outra forma. Assim como a contracultura nos anos 60 era uma outra forma de pensar e viver a cultura, a contra-indústria é hoje a idéia de uma outra indústria. Idéia da economia criativa, auto-gestionada e sustentável.

E por fim ainda tem um outro sentido que é uma espécie de diálogo com a antropofagia, aquele momento do modernismo em que foi necessário absorver a influencia do que vinha de fora. Hoje chegamos num momento não de se fechar poro que estava vindo, mas de digerir tudo o que absorvemos nessas décadas de influência. É hora de se auto-consumir. Estamos obesos de tanto nos alimentarmos de tudo que vem de fora. É um momento de “queimar essas calorias”.

Com o disco estamos retomando a idéia da antropofagia ritual, que é absorver as qualidades do inimigo devorado. A questão é que absorvemos tanto, por tanto tempo e não digeriu. A autofagia é a digestão de tudo que comemos culturalmente nessas décadas todas.

– Essa forma de trabalhar surgiu por ideologia ou necessidade?

Eu acho que uma coisa leva a outra. Se você quer viver do seu trabalho artístico, você pode produzir, distribuir, veicular e gerir ou você pode ficar esperando uma estrutura que vá fazer isso. Uma estrutura que vai te acolher. A ideologia começa no momento em que você resolve criar essa estrutura ao invés de esperar uma brecha na estrutura que já existe pra se inserir nela.

– As composições do Autófago são todas suas, e como as parcerias, marca de trabalhos anteriores, aparecem no disco?

Uma parceria fundamental é com o produtor do disco, Renato Villaça, porque esse disco vem sendo concebido a cerca de 2 a 3 anos atrás e nesse período fomos nos afinando e nos equipando pra encontrar um equivalente musical do conceito original do disco. E quando nós achamos que era o momento de gravar, coincidiu com um momento favorável do projeto ter sido aprovado na lei de incentivo. Conseguimos ainda uma disponibilidade de tempo pra emergir no processo, então nós entramos no estúdio e gravamos o disco quase todo só nós dois.

Complementaram o disco parceiros importantes da minha carreira, que também participam em outros trabalhos, como Dartagnan, Matheus Bahiense, Guilherme Castro (guitarra, viola e pífanos), Avelar Junior (baixo) e Fred Malverde (violoncelo). Tem ainda os novos parceiros Antonio Loureiro, Rafael Martini e Fernanda Starling. O disco tem ainda a participação especial da minha parceira Maísa Moura, que canta e divide comigo a direção artística e da cantora Patrícia Rocha, que faz um duo comigo em uma canção.

– Com o Sêlo Editorial e o Sêlo Musical (independentes), a Namarra Distribuidora e a Retroprodutora você tem buscado seus meios de recriar essa estrutura. E com projetos como o Reciclo Geral (2002) e participação na Sociedade Independente da Música (SIM) você tem também estimulado a cena da música em Minas Gerais. Como é se envolver nesse outro lado da moeda, o da auto-produção?

Como você mesmo disse, esses lados fazem parte da mesma moeda. Esse desdobramento é mais do que simplesmente o desejo de atuar em várias frentes, mas uma necessidade cada vez maior. Cada uma dessas atividades completa a outra, ainda que possam parecer até antagônicas, como editar uma revista e criar um associação de músicos.

Postado em 03/06/2007 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

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