Há algum tempo venho desenvolvendo o projeto de um livro em decomposição. É um livro com um formato e aparência comuns mas com prazo de validade. Isso significa que a capa, as páginas e a costura vai se decompondo dentro de um período de tempo mais ou menos determinado. Esse tempo vai variar de acordo com as condições de armazenamento e manuseio e, principalmente, em função do tratamento prévio do papel com a aplicação controlada de bactérias, fungos e reagentes químicos num processo que venho chamando de ‘anti-conservação’. Afinal, qual o tempo de vida de um livro? E mais: o livro pode ser um objeto de arte ou é apenas o suporte preferencial de um conteúdo artístico, literário? Mas então qual o tempo de vida de uma obra de arte? Talvez séculos no caso de uma escultura e alguns minutos no caso de uma performance. E o tempo de vida torna a obra menos ou mais artística? Além disso tem a questão de cunho sócio-econômico que permeia a produção editorial como um todo: porque, num país com altos índices de analfabetismo, o livro custa tão caro?
O livro, sem dúvida, desde a idade média pelo menos, ou mesmo antes, ocupa um lugar de destaque no imaginário humano como um símbolo de poder e conhecimento, ou seja, como um objeto que atesta e comprova o status social daquele que o possui. Mas o advento da tecnologia vem colocando em cheque diversos valores de nossa cultura e modificando hábitos centenários. O livro, durante séculos, manteve-se como objeto sagrado de acúmulo e transmissão de conhecimento, indispensável no entrecurso de uma civilização que se estruturou de forma basicamente escrita. Tem sido assim pelo menos desde Guttemberg. Com o surgimento do chip em meados do século
Apesar de podermos armazenar todo o conteúdo de uma biblioteca dentro de um simples disco rígido, apesar de termos hoje acesso gratuito e irrestrito a alguns dos principais acervos literários da humanidade e às principais obras ao alcance de um simples download, apesar da economia e praticidade prometida pelos novos modelos de e-books, continuamos adquirindo livros, ocupando um espaço significativo em nossas estantes, lutando contra traças e fungos e relutando em emprestá-los até para os amigos mais próximos.
Pensando nessas questões iniciei minhas pesquisas com reagentes químicos (que me valeram algumas queimaduras e irritações na pele), fiz um curso de conservação de livros (que me causaram certo constrangimento com o professor, depois de explicados meus propósitos) e comecei minha colônia particular de cupins, fungos e bactérias ( que me custaram parte da mobília e a corrosão de um relacionamento sólido). Mas enfim, tudo pela arte!
E para fechar a tampa do ano resolvi publicar aqui trechos desse work in progress – antes que todo o papel se acabe! – provisoriamente intitulado Livro em Extinção:
“Cupins modificados geneticamente escaparam de um laboratório no Massachusetts Institute of Technology em acidente suspeito. Minutos depois infestaram a biblioteca da Universidade de Cambridge e devoraram 50 mil volumes em menos de duas horas
Desde a madrugada de ontem todas as universidades isolaram seus acervos e entraram em estado de alerta na tentativa de conter os focos de ataque
No segundo dia de ataque cerca de duzentas fábricas multinacionais de papel e celulose foram atacadas e decretaram falência deixando milhares de pessoas desempregadas
Todo o estoque de grandes distribuidores como a Amazon.com foi dizimado em poucos minutos após ataque dos cupins aos seus depósitos
A praga desencadeou uma corrida contra o tempo na digitalização dos principais acervos mas especialistas calculam que mais de 60% de todo o conteúdo vai se perder para sempre
Curiosamente o escritor polonês de ficção científica Stanislaw Lem havia previsto o fim trágico dos livros no prefácio de seu livro “Memórias encontradas numa banheira” lançado em 1961. Assim que a notícia se espalhou o livro foi elevado à categoria de texto sagrado e adorado por fiéis que se multiplicaram aos milhares – quase tanto quanto os cupins – subdividos em novas seitas e religiões que ficaram conhecidas como stanislawiskas.
Hackers inspirados pela praga desenvolveram um poderoso cupim vitual que está destruindo arquivos de textos e imagens nos HDs de milhares de usuários e corporações
Várias empresas paralisaram suas atividades por tempo indeterminado porque os manuais técnicos foram consumidos e a operação e manutenção dos equipamentos se tornou inviável
Em cada região do planeta os cupins se adaptaram às condições locais sofrendo mutações evolutivas surpreendentes num curto período de tempo e a cada tentativa de exterminá-los com inseticidas eles tornaram-se mais resistentes
Fogueiras com milhares de livros foram acesas em praças públicas em todo o mundo na tentativa de eliminar os exemplares infectados e conter o alastramento da praga
Muros e paredes passaram a ser usados como painéis onde toda a população começou a anotar o que considerava mais importante
Nas escolas alunos começaram a desenvolver espontaneamente técnicas mnemônicas abandonadas no ocidente há muitas gerações
Devido à extinção dos documentos e comprovantes a propriedade privada simplesmente deixou de existir legalmente gerando instabilidade e pânico em todo o sistema financeiro
Contra todas as regras e procedimentos modernos os comerciantes retomaram nas negociações o antigo hábito de fazer acordos verbais e empenhar a própria palavra
Inspirados em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, grupos de pessoas começaram a se submeter a testes de memória para tornarem-se representantes orais de obras clássicas
A Biblioteca Municipal de Buenos Aires foi misteriosamente poupada pelos cupins”
Muuuuito bom!
Eu tinha pensado em um livro impresso em papel de fax, em que a impressão se esvanece com o tempo e a exposição à claridade, mas a sua idéia de decomposição do objeto é muito mais pertinente.
Não só a obra fenece, como também o suporte. Sem falar no fato de o papel de fax ser caro.
Parabéns!
voc~e pode vender o livro com cupins in vitro.
Proposta interessante e texto bom e divertido.. mas pensando em termos práticos.. eu considero mais eficaz o desenvolvimento direto de cupins eletrônicos e escrever como isso pode sucumbir ideais normativos e reafirmar outros como o livro de papel.. sei lá só pra viajar um pouco mais.
Legal paca.
que tal fazer um livro-doce? você vai lendo e botando os papeizinhos debaixo da língua?
rarara!!!
Gostei do autófago!
textos deslizantes.
posso te adicionar nos meus favoritos?
Um beijo!
adicionado aos favoritos!
tá?
bjs!
Sério isso? Livro destrutível! Custará caro. Talvez usando material reciclável, jornais por exemplo, aqueles que foram bastante manuseados, estariam já cheios de “praguinhas”.
Ah!dorei a idéia do livro comestível (Renato Vilaça). Seria uma idéia doce para crianças e adorei também suas dicas musicais. Vou te procurar no MySpace! Feliz ano novo! Beijus
Marceleza, a idéia do papel de fax não deixa de ser interessante. Inclusive do ponto de vista da distribuição via fax. Forte abraço
Mary, seja bem-vinda! Eu conheço a caixa do Tunga, é uma das edições mais luxuosas da luxuriosa Cosac. Se eu tiver uma daquelas vou querer conservá-la! Abraços
Thais, grato pela visita. Mas veja bem, nem sempre a praticidade é o critério para se realizar um trabalho artístico. Na verdade se fosse pela praticidade eu estaria fazendo outra coisa na vida…
Abraços
Renato, o senhor é um fanfarrão!
Bruna, fique à vontade! O “Modo de Falar” já foi incorporado. Abraços
Luma minha cara, não confie no Renato. Se eu fosse você não daria o doce dele para as criancinhas! E por falar em MySpace, vi que você criou um perfil. Seja bem-vinda ao orkut dos músicos!
Ave Makely!
Portentosa a idéia do livro auto-destrutivo, mas..
Como é que ficam aquelas pessoas que ainda insistem em ocupar as estantes (mais pelo prazer que pelo conhecimento), relutam em emprestar sua (talvez) única riqueza?!! Eu sou uma dessas pessoas e pensei em sugerir a publicação do mesmo exemplar periodicamente, desse modo sempre encontraria algum exemplar para comprar e ocupar seu devido lugar na prateleira…
Ótimo 2008!
Bjs
Makely, tudo beleza?
Estou viajando nos seus trabalhos.
Ganhei uma Revista de Autofagia do Bruno durante uma entrevista que fizemos para a Revista Trapiches. Parabéns!
Muita luz!
Alê Quites
Ainda estou na espera para ler seu livro. Abs, Cris
muito bom, passarei por aqui mais vezes.
curioso, quero ver se terei coragem de guardar esse livro junto aos outros…
Polly, já é difícil publicar uma única vez, acho que periodicamente só no blogue!
Alê, a viagem é gratuita, fique à vontade para escolher o roteiro.
Cris, o livro está esgotado, vou ter de conseguir um emprestado pra você.
Natalia, seja bem-vinda e volte sempre!
Rafael, se eu fosse você eu não colocaria. Mas não se preocupe, estou pensando em criar um invólucro isolante para embalar o livro e assim proteger o resto da biblioteca.
meu irmão, serei absolutamente fiel ao pensamento que, ao final da leitura, me ocorreu: GENIAL! – opinião da qual, acho, a aracruz não compartilha…
baita abraço meu, mais o desejo de os melhores dias, repletos de saúde e delícias bacantes para ti e para os teus.
Excelente idéia.