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Cidade Ocupada

 Movimentos Populares criaram um novo paradigma de atuação política que pode servir de modelo para mudanças futuras

Belo Horizonte é uma cidade improvável. Ninguém poderia imaginar há alguns anos que 2013 começaria com a movimentação que se viu por aqui logo em fevereiro. As ruas tomadas por dezenas de blocos organizados a partir das redes sociais, uma movimentação subversiva, contrariando o estigma de uma cidade conservadora, passiva e recatada. O Carnaval de rua da capital mineira tem um caráter eminentemente político, o que fica evidente no tom das marchinhas, no clima de tensão e expectativa de confronto com a polícia, no próprio trajeto de grande parte dos blocos, que passam irremediavelmente pela Prefeitura e pela Câmara Municipal.

É incontestável o fato de que o Carnaval, que vem ganhando dimensões maiores a cada ano, é um desdobramento direto da Praia da Estação, manifestação que contestou com irreverência o decreto municipal que proibia a ocupação da principal praça da cidade. A praia de concreto e cimento onde os banhistas a caráter disputavam os jatos d’ água de um caminhão-pipa se tornou uma prova incontestável de que alguma coisa acontecia na cidade. E a notícia ganhou o mundo.

De certa forma, esses acontecimentos prepararam o terreno para o que ocorreria em junho, com as grandes manifestações que tomaram o país. Belo Horizonte foi um palco estratégico, pois havia sido programado para acontecer por aqui alguns dos jogos da Copa das Confederações, inclusive um da seleção brasileira. Na semana anterior eclodia o grito dos manifestantes em São Paulo convocados pelo Movimento Passe Livre. A forte repressão policial à manifestação pacífica do dia 17 de junho foi o gatilho que desencadeou o fenômeno e levou às rua de várias cidades do país centenas de milhares de pessoas nos dias seguintes. A reivindicação pela tarifa zero, que mobilizaria naturalmente os habitantes inconformados da maioria das metrópoles brasileiras, encontrou eco potente numa cidade como a nossa, onde a questão da mobilidade se tornou crônica, onde a o transporte público é sucateado, onde o metrô é motivo de piada. Caía, portanto, como uma luva. Mais do que isso, os manifestantes belo-horizontinos perceberam imediatamente o potencial anárquico da reivindicação a partir da intuição de que a livre circulação das pessoas pela cidade estabeleceria uma outra relação com o espaço urbano. Conscientes de que a configuração das cidades é excludente e a mobilidade se tornou um privilégio que discrimina e segrega mais do que o salário, a questão da mobilidade se tornou uma questão tão imprescindível quanto educação, saúde e segurança.

Mas, o detalhe que chamou a atenção nas manifestações em Belo Horizonte foi uma certa atitude lúdica em contraponto à truculência policial. Um dos momentos mais irreverentes, uma espécie de celebração lúdica do futebol, acontecia durante as peladas promovida pelo Comitê Atingidos pela Copa. Um contraponto genial do improviso e da criatividade com a pompa e a oficialidade do evento da FIFA.

No dia 24 de junho foi criado o Comitê Popular de Arte e Cultura de Belo Horizonte, que reconhecia a legitimidade e se vinculava à Assembleia Popular Horizontal, espaço aberto de discussão dos rumos do movimento das ruas.

As assembleias aconteceram sob o Viaduto de Santa Tereza, espaço simbólico de resistência contra o processo de gentrificação e higienização do baixo centro, ocupado heroicamente pelo Duelo de MCs e outros movimentos culturais. O comitê propunha ações estratégicas a partir de intervenções artísticas durante as manifestações. Houve tráfico interestadual de material subversivo de alto impacto visual. A bandeira gigante criada pelo Comitê Popular de Arte e Cultura com os inscritos “Unfair Players – FIFA – Police – Anastasia – Lacerda” utilizada na grande manifestação do dia 26 de junho em Belo Horizonte foi enviada para o Rio de Janeiro e os manifestantes a utilizaram na linha de frente a caminho do Maracanã com duas pequenas alterações: “Cabral – Paes”. De lá ela seguiu para outras cidades.

Um outro movimento, de caráter socioambiental, mas também pautado em ações culturais, o Fica Ficcus, juntou forças e despontou nesse mesmo período a partir das ameaças de corte das árvores centenárias em algumas avenidas da cidade. Eles se conectaram aos manifestantes que ocupavam o Parque Gezi em Istambul e esse apoio criou um vínculo internacional poderoso. Um dos fatos mais inusitados foi a colocação de um piano sob uma das árvores que ficava disponível dia e noite para quem quisesse tocar.

Foram dias intensos aqueles, com um turbilhão de acontecimentos vertiginosos, notícias desencontradas, enfrentamentos, mobilização nas ruas e movimentação frenética nas redes sociais. Esse pequeno texto que escrevi à época e postei na minha página do facebook expressa um pouco o sentimento daqueles dias: “No sábado passado eu achava que os partidos não deviam levantar suas bandeiras. Virei casaca. Na segunda eu era contra qualquer manifestação violenta. Voltei atrás. Na quinta eu ironizei o clima de festa e a falta de consciência política de tantas pessoas durante as manifestações. Pensei melhor. Anteontem eu acreditava que pudesse acontecer um golpe. Mudei de opinião e desconfio muito de quem mantém a mesma opinião de uma semana atrás. A única posição que eu mantive desde a semana passada é que a truculência da policia militar é inaceitável.“

As grandes passeatas cessaram gradativamente, mas, os ânimos continuaram acirrados. A sensação é de que algo começava a mudar nas estruturas tradicionais do poder. A impressão era que a pressão popular, estava ajudando a criar um novo paradigma de atuação política que poderia servir de modelo para mudanças futuras.

Tinha ficado escancarado que o modelo de democracia representativa não contemplava as demandas da nova sensibilidade que vinha se formando nas redes virtuais e reais na trama social da cidade. As manifestações deixavam claro que os partidos não nos representavam e que o sistema de segurança baseado na força policial opressora não atendia nossas necessidades. E deixava claro por fim que a imprensa oficial está completamente comprometida com interesses que não são os nossos, ainda ligada a velhas práticas de manipulação e distorção dos fatos. Não precisávamos mais dela.

E a movimentação não poderia parar. A Assembleia Popular Horizontal deliberou a ocupação da Câmara Municipal de Belo Horizonte que ocorreu na manhã do dia 29 de junho. Os manifestantes foram recebidos pela tropa de choque com spray de pimenta e cassetetes. A reação foi mais violenta do que se poderia supor: bombas de poesia contra o efeito moral da repressão, os manifestantes atiraram tinta vermelha nos policiais e desenharam corações nos seus escudos. No mesmo dia aconteceu o Sarau Vira-lata, símbolo de resistência poética na cidade, e a ocupação seguiu semana adentro com diversas atividades educativas, debates e manifestações culturais. A principal reivindicação era pela a revogação do aumento do preço da passagem e anulação da votação que vetou a abertura dos contratos das empresas de transporte da cidade. Durante os dias de ocupação, nas assembleias, surgiram outras pautas que foram levadas por um comitê de representantes para reuniões com o governador e com o prefeito.

A câmara foi desocupada uma semana depois, mas o espírito de uma zona autônoma temporária permaneceu. As ocupações seguintes aconteceram como eventos construídos de forma colaborativa, horizontal e autogestionada ocupando novamente com manifestações artísticas e culturais as ruas da cidade. Acontecem sistematicamente desde julho.

Mas, provavelmente o acontecimento cultural mais importante que surgiu na cidade nos últimos anos tenha sido o Espaço Comum Luiz Estrela,  ocupado no  dia 26 de outubro. Ele de certa forma condensa e aprofunda a experiência subversiva da Praia da Estação, do Carnaval de Rua e das manifestações de junho. O casarão abandonado à Rua Manaus, região nobre, ao lado de um batalhão da polícia militar, no perímetro da aérea hospitalar, num prédio onde funcionou um hospital de psiquiatria infantil, com suas rachaduras e pilares carcomidos pelo descaso do poder público é uma metáfora arquitetônica da situação da cultura na cidade. O Espaço Comum Luiz Estrela estabelece ainda um vínculo simbólico e efetivo com outras ocupações espalhadas pela região metropolitana, como Dandara, Rosa Leão, Eliana Silva, William Rosa e Esperança, além da Casa do Estudante, o MOFUCE, todos ameaçados por pedidos de reintegração de posse. A sua ocupação e transformação em centro cultural autogestionado é uma resposta criativa e libertária da sociedade civil, um grito potente aos governantes: estamos só começando e não vamos parar!

 Makely é poeta, cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor

 Artigo publicado na revista “Fatores de Mudança – Pauta Global 2014”, projeto de final de ano do “The New York Times”  em parceria com o jornal O Tempo

Postado em 23/12/2013 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

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