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Manifesto pela Música Autoral

Há um fenômeno na música produzida em Minas atualmente. O que chama a atenção em primeiro lugar é algo aparentemente óbvio na caracterização de qualquer cena: é predominantemente autoral. Segundo, e não menos impressionante é a quantidade. Não há registro na história recente de outra época em que se tenha produzido tanta música como agora. Nem durante o período áureo do Clube da Esquina nos anos 70 nem durante a fase heróica do rock mineiro nos anos 80.

Além disso, há uma peculiaridade que dá liga e amálgama para toda essa produção, algo ainda intangível, dissimulado quase, subreptício, mas identificável na maior parte dessa produção, independente de gênero ou estilo. Esse elemento muitas vezes é identificado como um germe da escola harmônica mineira, ainda que seja a negação dela.

Outra característica dessa cena é o fato de que não há unidade estética, a produção vai da música instrumental ao rock, do regional ao samba, há uma diversidade e uma afinidade ideológica.

Alguns fatores contribuíram e ajudam a entender o fenômeno. Houve nos últimos anos uma significativa profissionalização dos músicos e produtores atuantes na cena. Parte dela é graças ao aporte financeiro injetado no mercado local pelas leis de incentivo, com destaque para a estadual, com dedução do ICMS. Graças às leis a maior parte desses artistas conseguiu gravar seus discos em condições adequadas, montar seus shows com qualidade técnica compatível com os padrões de mercado, adquirir equipamentos e instrumentos de qualidade, além dos produtores terem se capacitado, formalizado suas empresas, etc.

Outro fator importante é o advento da organização inédita dos músicos. Nos últimos anos surgiram algumas entidades e um fórum que ganhou reconhecimento da sociedade e abriu um canal de interlocução com o poder público. A partir dessa articulação foi lançado um programa inédito no país que engloba um edital de passagens, um edital de circulação nacional e um programa de exportação.

Iniciativas como o Reciclo Geral, realizado em 2002, organizado pelos próprios músicos e considerado um marco dessa nova geração, serviram como modelo e incentivo para outras ações. Serviram também para provar a existência de um público ávido por novidade, que naquela ocasião lotou o Reciclo Asmare Cultural durante três meses para ouvir exclusivamente composições inéditas.

Essa música começa a ser reconhecida no Brasil e no mundo. Prova disso são os convites de festivais e casas de espetáculo que começam a surgir. O público local já percebeu esse fenômeno e acompanha a cena com avidez. Tudo indica que somente os elos da cadeia responsáveis pela veiculação e consumo local são os únicos ainda insensíveis ao fenômeno. Só isso explica o fato dessa música não tocar nas rádios locais (com exceção de programas específicos da Rádio Inconfidência, da UFMG Educativa e da Rádio Guarani) e não haver sequer uma casa de shows onde essa produção seja acolhida com um mínimo de dignidade.

Entenda-se por acolhimento digno o cumprimento mínimo de exigências universais para que a música autoral seja apresentada, a saber: som e luz compatível com a formação e tratamento acústico de acordo com o espaço; palco com dimensões adequadas à formação; cachê ou porcentagem mínima da bilheteria; apagamento da luz da platéia e interrupção do serviço dos garçons durante a apresentação; tempo máximo de 2h incluindo possíveis intervalos; alimentação dos músicos; pagamento dos direitos autorais; contrato assinado.

Essas condições, que podem parecer exageradas se considerada nossa situação atual, são comuns em todas as casas de espetáculo que investem no perfil de música autoral em qualquer parte do mundo. Palco, luz, tratamento acústico e atenção do público, redução da luz e interrupção do serviço de atendimento das mesas (em algumas casas os garçons atendem com lanterninhas) são detalhes fundamentais para se conseguir uma ambientação adequada.

Mas sabemos que não se modifica esse atual contexto da noite para o dia. É gradual a profissionalização dos espaços e a resposta do público ao investimento é inevitável. Esse é o primeiro passo, estamos aqui propondo um diálogo aberto com os programadores e diretores de rádios e os donos das casas de shows em Belo Horizonte.

COMUM – Cooperativa da Música de Minas

Postado em 01/06/2009 Blog!

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

(12) respostas

  1. nosliw
    01/06/2009 de 21:27 · Responder

    Grande Makely, concordo com tudo o que disse e proprôs aí, o atual cenário musical mineiro é de grande qualidade, diversificado, porém ainda desconhecido de grande parte do próprio público mineiro, precisamos realmente que os profissionais da música mineira sejam tratados com o devido respeito e merecimento e que a informação possa chegar ao público. Como é possível ainda existirem as mesmas rádios jabazeiras, repetindo as mesmas músicas, organizando shows com as mesmas bandas, buscando atingir sempre uma mesma faixa etária ainda em formação?! Vamos mudar isso!

  2. Anderson Ribeiro
    02/06/2009 de 20:44 · Responder

    Sou fã da ‘nova música mineira’ e o melhor é que, de fora, já dá pra perceber a força que ela tem e a organização dos profissionais (músicos) daí possuem. Seu texto mostra bem o porquê desse fenômeno. DAqui fico sempre de olho aberto pra saber das novidades musicais mineiras para tê-las, claro. Um abraço!

  3. makely
    05/06/2009 de 21:11 · Responder

    Salve nosliw, seja bem-vindo!

    Anderson, da próxima vez em que você passar por aqui precisamos marcar um café. Abraços

  4. Salomão Terra
    10/06/2009 de 15:00 · Responder

    Concordo bem com as idéias. Entretanto (sobre espaços de shows) há que se dizer que para além do senso mais imediato da percepção de cultura, na capital mineira o espaço "Bar" tem um papel fundamental.

    É nítido que a profissionalização dos espaços é necessária, mas subjulgar algo tão enraizado na cultura de uma cidade é arriscado. Em termos mais pragmáticos: parece ser da natureza cultural da população belorizontina ter no Bar um espaço de convivência (conversas, mobilidade, expressão etc). Sendo assim, mais que simplesmente propor-mos aspectos de melhoria logística, temos de pensar antes a relação arte/espaço, música/bar, artista/público.

  5. makely
    11/06/2009 de 16:03 · Responder

    Caro Salomão, o que você sugere? Estamos abertos a contribuições.
    Abraços e seja bem-vindo

  6. Renato Villaça
    12/06/2009 de 09:03 · Responder

    aplaudo o interesse do makely em construir uma cena local consistente para apresentações e circulação da música autoral.

    mas concordo também com o Salomão sobre a cultura dos bares em belo horizonte.

    há que se chegar a uma solução dialética pra isso.

    além do mais, a exigência de ambientes "adequados" é bem relativa. fico pensando às vezes se ela não se sustenta muito ainda em um tipo de interpretação moderna demais da arte e do artista, em que há uma separação nítida entre artista e público, uma "aura sacralizada" em torno do espetáculo, do foco no palco, da moldura de silêncio.

    também odeio normalmente tocar em bares. mas é neles que nossos públicos transitam.

  7. Salomão Terra
    15/06/2009 de 08:51 · Responder

    As possibilidades são diversas, mas a grosso modo, pode se pensar em:

    – Artistas (comunicólogos, designers etc) como "consultores" de um novo negócio. O projeto de um bar poderia levar em consideração, desde o primeiro momento, sua apropriação como local de cultura e tempo livre. Resumindo, mais inteligência na hora de criar um novo negócio.

    – Eventos específicos de festivais acontecendo neste espaço (TAZ, intervenções). Por exemplo, exposições, espetáculos do FIT, FAN etc, para fomentar a possibilidade de retorno empresarial. Agenda melhor, mais público, mais consumo.

    – Diálogo de entidades (de músicos, teatro, cdl, comerciantes).

    …enfim, acredito que dentro de debates direcionados aos profissionais de arte e de comércio, idéias não faltariam. Mas é perceptível que primeiramente seria produtivo se eles de fato acontecessem.

  8. Elena
    15/06/2009 de 13:48 · Responder

    Acho que apropriar espaços para receber o artista e o público(que realmente quer ouvir música) não seria tão difícil assim. Depende de uma série de fatores, é claro, mas principalmente da vontade e do foco do comerciante. Acho imprescindível esse diálogo entre artistas e donos de bar, como propõe o Salomão. Mas acho, também, que BH não perderia seus botecos. Há espaço pra tudo. O que não dá é pra cantar/tocar durante 4 ou cinco horas, enquanto um cara come batata frita e o outro berra o garçom pedindo uma cerveja.

  9. makely
    15/06/2009 de 15:29 · Responder

    Renato, Salomão e Elena, grato pelas suas colaborações!

    Renato, não acho que seja sacralização um espaço adequado para que o artista apresente seu trabalho. Ninguém aqui está querendo virar celebridade, só quer trabalhar com dignidade. Um consultório médico tem uma ambientação adequada, um escritório de advocacia também. Porque um músico não pode ter um espaço adequado para apresentar seu trabalho? Isso não exclui a possibilidade de interação com o público, nem a proibição de manifestação deste. Mas você bem sabe que é muitas vezes constrangedor apresentar um trabalho autoral, que exige um mínimo de atenção, e não se fazer ouvir.

    Ótimas sugestões Salomão, convido você a ajudar a implementá-las. A cooperativa precisa de pessoas com boas idéias e disposição como você.

    Elena, acho que esse é o ponto, se tivéssemos hoje um só espaço, já faria toda a diferença!

  10. Salomão Terra
    17/06/2009 de 14:12 · Responder

    Opa…grande interesse! já me predisponho…

  11. Bruno
    17/06/2009 de 20:09 · Responder

    Makely, não estou muito por dentro dessa discussão toda, mas na semana passada, conversando com o Claudão, da Obra, fiquei sabendo da existência de uma assossiação nacional de donos de casas de show, da qual ele é o presidente. Talvez seja uma boa vcs entrarem em contato para discutir pontos de interesse comum aos dois lados. Abraço.

  12. makely
    20/06/2009 de 07:01 · Responder

    Bruno, por coincidência me encontrei com o Claudão aqui em Recife. Vamos conversar sobre o assunto. Abraços

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