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Córrego do Batistério

O sertão está camuflado em Várzea da Palma. Ninguém dá notícias, ninguém sabe dele. Comem hambúrguer e pizza e ouvem música mecânica em volume muito além do razoável nos carros e nos bares. Mas ele surge na madrugada enquanto a cidade dorme, em sonho. E a cidade ganha contorno de outro tempo, outro sentido de existência.

No dia seguinte vou procurar “o informante” sobre o Córrego do Batistério, que deveria estar ali próximo, afluente do Rio das Velhas, que corta a cidade. Mas os habitantes, como se estivessem encantados, não se lembram de nada, já não ouvem, já não vivem a própria vida, foram abduzidos. Só dão notícias do simulacro: as olimpíadas, os últimos capítulos da novela e camaros amarelos.

Quase desistindo encontro um ex-caçador que dá notícia certa da existência, porém localização imprecisa, do dito córrego. Uns quarenta quilômetros da cidade, pela estrada de terra até Barra do Guaicuí.

 O sol já no quarto descendente, me arrisco pela indicação do caminho. Era o início da minha errância e eu não sabia.

Passei num bordel de beira de estrada, mulheres-dama me deram água e me convidaram para passar a noite. Não fiquei, segui viagem para não amolecer o espírito. Cumpri os 42 km até a ponte de Madeira sobre o leito seco do Batistério. Era uma grota, já no fim da luz do dia. Dali ele deveria verter no das Velhas, poucos quilômetros antes do São Francisco. Ali começou a jornada de Riobaldo como jagunço, seu reencontro com o menino da Barra do Rio de Janeiro.

Eu entrei no meu labirinto, a estrada sumiu na areia, só boi me seguia no breu. Os aparelhos marcavam rota não transitável e eu quase acreditando nas coordenadas do maligno. Devia já ter chegado em algum lugar e só me embrenhava mais. A fadiga, o cansaço, o farol do Cavalo Motor apagado quando cessava o movimento das rodas travadas nos bancos de areia, uma bifurcação sem indício, entrei errado e fui parar no pé de uma serra.

Sertão é labirinto e o medo nosso minotauro. Deixei o facão na bainha do alforge – à mão, o canivete na cintura e rompi a escuridão quando avistei uma luzinha fraca. Da estrada dava uns 300 metros. Gritei por informação. A luz apagou. Insisti e a voz respondeu me confirmando o caminho errado. Tinha que voltar e seguir o outro sentido na bifurcação. Só ouvia a voz, distante. O diálogo foi esse, e assim eu retornei. Partindo ouço dois tiros atrás de mim. Era a voz se certificando que eu não ficaria por perto. O medo dele era diferente do meu. Medo de homem.

Sigo errando pelo caminho certo e topo outra bifurcação. Fiquei ali fazendo cálculos sem conseguir chegar a uma conclusão. Pressenti movimento no mato, mão no facão, forcei e vista e vi surgir um vulto de dentro da escuridão. Na frente um cachorro. Deitei a bicicleta no chão e gritei: Arrenego cão dos infernos, valei-me nossa senhora da Abadia!

Mas ele veio vindo sem hesitar, quando estava a poucos metros esbarrou e eu distingui: era um senhor albino, miúdo, a expressão serena. Baixei minha arma. Ele não demonstrava medo e isso, não sei exatamente porque, me deixou aliviado. Sem eu perguntar ele me disse: – Meu filho, você está perdido nos caminhos, mas pode pegar essa banda de lá da estrada toda vida que daqui a três léguas encontra pouso pra descansar o corpo cansado.

Foi o tempo de ajustar as amarras do alforge na bicicleta, quando me virei para agradecer o homem já tinha sumido na escuridão. Não tive mais dúvida nem quis fazer ciência, segui a indicação com garantia de certeza.

No assentamento de Rompe Dias veio a confirmação, o caminho era aquele mesmo!

Exatamente 18 km depois estava na Barra do Guaicuí. Eram mais de 10 horas da noite e tinha rodado 78 km, contando as voltas no labirinto. Dormi um sono pesado e o senhor albino me apareceu no sonho novamente, dessa vez não disse nada. Amanheci minhas dúvidas naquela travessia. Como pode um cético invocar santo em hora de desespero?

Postado em 12/08/2012 Cavalo Motor

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Sobre o autor

Makely Ka (Valença do Piauí, 1975) é um poeta cantor, instrumentista, produtor cultural e compositor brasileiro. Makely é poeta, compositor e agitador cultural. Atuando em diversas áreas como a música, a poesia e o vídeo. Incorpora à sua produção artística um componente crítico e reflexivo. Autodidata, desenvolveu uma poética musical própria, amalgamando elementos da trova e do aboio de herança ibérica às novas linguagens sonoras urbanas como o rap, do despojamento da poesia marginal ao rigor formal da poesia concreta.

(4) respostas

  1. Suelen
    14/08/2012 de 18:55 · Responder

    Olá.

    Vim cá pesquisar a respeito do Rio das Velhas e do Córrego do Batistério, por conta de Grande Sertão. Estou estudando essa obra para uma iniciação científica. Sou estudante de Ciências Sociais. E fiquei surpresa com o que encontrei: alguém fazendo o percurso de Riobaldo Tatarana. Foi nessa região que Riobaldo se abrigou depois de ter fugido do bando de Zé Bebelo, num aguentava mais a constante brutalidade. Foi ali que ele dormiu com uma mulher cujo marido estava fora. Ela ficou de acender uma fogueira pra ele quando o marido não estivesse. Enquanto isso Riobaldo ficou abrigado na fazendo do do pai dela, Manoel Inácio, dito Malinácio. No entremeio da espera chega um bando de tropeiros. E é ali que se dá o Reencontro com o Menino. Depois ele segue com o bando sob a chefia de Titão Passos. E se cansa: “de seguir assim, sem a dura decisão, feito cachorro magro que espera viajantes em ponto de rancho, o senhor quem sabe vá achar que eu seja homem sem caráter. Eu mesmo pensei. Conheci que estava choco, dado no mundo, vazio de um meu dever honesto. Tudo naquele tempo, e de cada banda que eu fosse eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria firme numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte”. Senti vontade de compartilhar. Estamos na mesma etapa da travessia: a minha é covarde, preguiçosa, talvez inútil – ao avesso da tua. Parabéns. Acompanharei.

  2. Pedro Paulo
    16/08/2012 de 08:34 · Responder

    Hehe. “[…]Mas no sufoco, eu fico um pouco mais igual[…]”

  3. Makênia
    17/08/2012 de 16:10 · Responder

    Makely! Tô lendo tudo que sai, gostando muito e mostrando toda orgulhosa a toda a gente… Espero que venha o livro depois! Bjos mil, saudades!!!

  4. Makênia
    17/08/2012 de 22:13 · Responder

    Texto perfeito, decidi, vou ler Guimarães, rsrs.

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